Flusser, McLuhan, Benjamin: reflexões sobre mídia, técnica e cultura

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Entrevista com Erick Felinto

A entrevista a seguir é uma conversa que passa por autores clássicos e contemporâneos e por abordagens da mídia, da comunicação, da cultura. Numa tarde de sábado, mais ainda, sábado de carnaval, Erick Felinto conversou conosco por skype, de Berlim, Alemanha, onde realiza um pós-doutorado na Universidade de Artes – universidade na qual também se encontra o Arquivo Flusser. Esse autor e outros importantes para compreender as mídias contemporâneas, assim como algumas abordagens dos estudos das mídias, foram os temas em pauta. Felinto é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UERJ e autor de A Religião das Máquinas: Ensaios sobre o Imaginário da Cibercultura (Sulina, 2005), Passeando no Labirinto: Ensaios sobre as Tecnologias e Materialidades da Comunicação (EDIPUCRS, 2006) e Avatar – O futuro do cinema e a ecologia das imagens digitais (Sulina, 2010, em co-autoria com Ivana Bentes), entre outros.

 

Chamou-me atenção a imagem do arquivo Flusser que aparece na sua foto no perfil do skype. Está trabalhando nesse arquivo?

Estou em Berlim, trabalhando na Universidade das Artes. O arquivo Flusser fica nesta universidade. O curador do arquivo é o Siegfried Zielinski e é com ele que eu trabalho. Frequento bastante o arquivo Flusser e tenho desenvolvido muito interesse por esse autor, entre outras questões que estou trabalhando aqui.

Isso é recente na sua carreira ou é um autor que lhe acompanha há mais anos?

Conheço Flusser desde 1994, mas, inicialmente, na área de literatura, área em que fiz doutorado, apesar de todo o resto de minha formação ser em comunicação (graduação em jornalismo e mestrado em comunicação e cultura).? Mas, de uns três anos para cá, comecei a reler o Flusser no contexto da comunicação, e o acesso a esse arquivo me abriu outras perspectivas que eu não conhecia. Então, ele está se tornando uma figura muito importante na minha pesquisa hoje, que é sobre teoria da mídia alemã.? O Flusser na Alemanha tem um nome muito maior, inclusive, que no Brasil, como pensador da mídia. Praticamente todos os manuais alemães de teoria da mídia o mencionam, coisa que no Brasil é bem mais rara. O interesse por Flusser no país está mais localizado em São Paulo, mas ainda tem muito pouca gente no Brasil pesquisando sua obra, por exemplo Norval Baitelo e Gustavo Bernardo.

A que se deve essa divulgação do Flusser na Alemanha?

Flusser escrevia pelo menos em quatro línguas: português, inglês, francês e alemão. Ele tinha um vínculo bastante forte com a cultura alemã. Esteve na Alemanha algumas vezes, foi professor visitante na Universidade de Bochum onde fez uma série de palestras que depois se transformaram num livro que só existe em alemão, um dos últimos livros que escreveu. Juntaram as palestras e publicaram o livro com o título Continuando a pensar a comunicologia (Kommunikologie weiter denken), coordenado por Silvia Wagnermeier. O prefácio é de Friedrich Kittler, que é hoje o maior teórico da mídia alemã e foi uma das pessoas que conheceu o Flusser e convidou para ir a Alemanha.

Comunicologia?

Era um termo que Flusser usava no lugar de teoria da comunicação. Para mim, esse livro reflete o pensamento mais maduro de Flusser. Uma pena que ainda não tenha tradução para nenhuma outra língua. No livro, ele faz uma espécie de síntese de toda a sua obra. Esse curso foi dado entre maio e junho de 1991, no mesmo ano que ele morreu. Há outro livro do Flusser que só existe em alemão chamado ? Vampyroteuthis Infernalis.

E do que trata o livro?

É um livro muito estranho, muito singular, uma espécie de fábula filosófica, um gênero que o Flusser desenvolveu. Ele o chamava de ficção filosófica. O texto fala sobre um animal marinho, cujo nome científico é Vampiroteuthis Infernalis, então usa essa criatura que vive nas profundezas como uma alegoria para refletir sobre a condição humana e a nossa relação com as tecnologias. Esse livro foi ilustrado por Louis Bec, um artista precursor na arte biológica e eletrônica. Mas é um livro impossível de classificar. É um exercício de teoria, é uma ficção, uma alegoria, é um manifesto sobre a relação entre arte e tecnologia. É, talvez, um dos textos mais interessantes do Flusser. O livro tem sua versão em português que o próprio Flusser escreveu a máquina e está nos Arquivos. Eu escrevi um ensaio publicado online na revista Flusser Studies onde abordo esse livro. O Flusser fazia isto. Escrevia um texto numa língua e depois ele próprio o recriava em outra língua. Não dá para dizer que são traduções porque ele tinha um conceito muito avançado de tradução. Não era simplesmente a passagem literal de uma língua para outra, mas era uma recriação no contexto cultural de outra língua. Há dois originais em português desse livro que são diferentes, e não são iguais ? versão em alemão. Esse era outro exercício que ele fazia bastante. Ele escrevia e reescrevia, traduzia de uma língua para outra, recriava continuamente o material que produzia. A versão em português deve ser publicada em breve pela editora Annablume.

Numa entrevista em que perguntam a Flusser sobre autores que caminham na sua mesma direção, ele citou Marshall McLuhan e Walter Benjamin. Esses três autores são particularmente importantes para compreender a contemporaneidade marcada pelas mídias digitais?

O que está acontecendo hoje é que alguns autores que ficaram esquecidos durante muito tempo – McLuhan é um caso muito emblemático- começaram a ser relidos ? luz dessas transformações tecnológicas que estamos vivendo nos últimos 20 anos. McLuhan está conhecendo agora uma onde de revival, de interesse pela obra dele. De fato, existe ainda muita coisa interessante não explorada no universo do pensamento de McLuhan. Ele é uma referência muito importante na obra de Flusser, apesar de que Flusser quase não cita autores. Mas, McLuhan e a Escola de Toronto são uma das grandes influências na obra do Flusser. Benjamin, já é uma figura mais consagrada, mas ele também passou por esse processo. Benjamin ficou durante muitos anos praticamente esquecido e só lá pelo final dos anos 70 começou a ser redescoberto.? No Transmediale, grande evento de arte eletrônica aqui em Berlim, acabou de ser lançado um livro inédito de McLuhan (pelo menos nessa versão), o “Counterblast”.

Quais conceitos mais específicos desses autores tem sido mais produtivos para suas pesquisas?

De Benjamin, acho interessante a ideia de que cada cultura projeta sobre seus aparatos técnicos o imaginário, as expectativas da época. Uma ideia dele que aparece em vários momentos, principalmente no livro das Passagens, é que quando surge uma inovação tecnológica, toda cultura tende a representar essa inovação através de formas já conhecidas. As primeiras lâmpadas elétricas tinham formato de chamas. Os primeiros automóveis tinham o design semelhante as carruagens. É um conceito muito interessante para pensar como a tecnologia se apresenta enquanto forma e a relação entre tecnologia e imaginário cultural. Benjamin é um autor que da muitas chaves interessantes para pensar a relação entre o plano simbólico da cultura e da sociedade e a dimensão material da técnica, das tecnologias, dos aparatos. O que mais me interessa no trabalho do Flusser é a maneira como ele traduz uma espécie de história da cultura intimamente ligada ? história da técnica, algo que a Escola de Toronto também fez. As transições que o Flusser escreve de um momento histórico para outro me chamam muito a atenção, porque mostram como os momentos histórico-culturais refletem também momentos tecnológicos.? A era da imagem técnica ele chama, por exemplo, de pós-história. Ele estabelece relações entre formas tecnológicas e configurações culturais. Uma ideia da Escola de Toronto que influenciou o Flusser foi essa ideia que a história das tecnologias, das mídias, se reflete em momentos culturais marcados por distintas formas de cognição.

Essas relações são próprias de uma ecologia dos meios, você escreveu um livro com Ivana Bentes sobre Avatar cujo subtítulo é ecologia das imagens digitais. Que ecologia é essa?

Achei a pergunta interessante, porque eu bolei esse título e o fiz pensando num título que fosse chamativo, que fosse curioso, uma estratégia de marketing, digamos assim. A questão ecológica é um tema central do filme Avatar, no nível narrativo. Curiosamente hoje existe uma discussão muito interessante sobre ecologia da mídia, outro nível de entendimento do que seria esse conceito de ecologia, aplicado ? paisagem midiática na qual a gente vive inevitavelmente na contemporaneidade. Na verdade, discutimos como a ecologia é representada no filme do Cameron. Junto com a ecologia, um movimento bastante forte na Alemanha é a arqueologia da mídia.

Mas, já é outro conceito/metodologia…

Essa idéia de arqueologia, inspirada principalmente em Foucault, consiste em reconstituir a gênese histórica de um fenômeno. Tem ai uma metáfora com a arqueologia, com o desenterrar o que está oculto em camadas geológicas. Essa metáfora tem uma tradição muito grande nas ciências humanas, Freud, por exemplo, era obcecado com arqueologia.? Ele comparava o inconsciente com processos de desencravar conteúdos reprimidos. É interessante que em alemão, a palavra “história” (Geschichte) tem relação com o termo “camda”, “estrato” (Schicht) – e Flusser assinala isso. Aqui na Alemanha autores como Kittler e Zielinski começaram a usar essa metáfora para pensar a mídia de modo histórico. Por exemplo, a questão da cibercultura, em vez de pensa-la como uma ruptura radical com o passado, eles buscam investigar historicamente as condições de emergência desses fenômenos contemporâneos. Evidentemente isso é feito através de um conceito de história que não é uma história linear. É uma história nos moldes foucaultianos, feita de discontinuidades, de rupturas, de passagens de um sistema cultural para outro. Nos estudos mais recentes sobre novas mídias essa abordagem histórica de natureza arqueológica tem se tornado cada vez mais comum, não só na Alemanha, onde já está consagrada, mas em obras contemporâneas que se tornaram quase clássicas como A linguagem das novas mídias de Lev Manovich.

Manovich faz uma arqueologia dos novos meios?

Ele toma as características das novas mídias, o cinema digital, por exemplo,? e refere alguns dos traços desses meios a um passado, a sua origem, a sua arché. As animações em flash, que formam boa parte das imagens digitais hoje é um exemplo claro dessa genealogia. Manovich refere essas imagens a uma estética que era característica da emergência do cinema quando existiam aqueles aparatos óticos como praxinoscópio ou zootrópio que brincavam com a ilusão da imagem em movimento. Todo o estilo de Manovich é um exercício de arqueologia do cinema e das mídias digitais.

Também quando explica o fotoshop com o dadaísmo e os movimentos artísticos de inícios do século 20?

Exato. Esse tipo de trabalho eu acho dos mais interessantes que apareceram nos últimos anos em relação aos estudos da mídia. Quando o fenômeno da cibercultura emergiu, havia uma tendência muito forte ao apagamento da história, ao desaparecimento da memória. Pensando o fenômeno como radicalmente novo sem relação com o passado, ruptura radical. É interessante ver como o tema da história, da memória tem sido abordado nos últimos anos. É o tema eixo para compreender as tecnologias digitais. Hoje contamos com uma memória gigantesca, artificial, alguns usam a metáfora de “palácios da memória” para se referir ? internet. Mas, ao mesmo tempo, todo esse instrumental, esse suporte tecnológico colabora para o esquecimento de nossa memória natural. Como dizia McLuhan, a prótese, ela estende uma capacidade e atrofia outra. Vivemos numa cultura onde tudo é muito volátil. A informação tem um valor extremamente volátil. Ao mesmo tempo temos um arsenal tecnológico para criar uma memória. Essa memória artificial compõe os “arquivos”, no sentido de Foucault (ainda que sua falha tenha sido dedicar quase nenhuma atenção aos arquivos tecnológicos: cinema, vídeo etc), arquivos que representam nossa memória cultural.

Confira a entrevista com Erick Felinto para a XI Semana da Imagem na Comunicação

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