As imagens dão vida aos sonhos

Entrevista com Maurício Lissovsky

“Quando não estamos olhando para elas, as imagens dão vida aos sonhos que estão guardados dentro delas. Inventam países, proporcionam viagens, constituem famílias, cultivam desavenças. Quando nossa vigilância cochila, as imagens fazem suas travessias e travessuras”. Essa é a opinião de Maurício Lissovsky, professor, pesquisador e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. Lissovsky pesquisa particularmente à teoria, linguagem e história da fotografia e é autor de, entre outros, Máquina de Esperar: origem e estética da fotografia moderna (Mauad, 2008). Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, Lissovsky fala sobre a atualidade da fotografia como objeto de pesquisa, alguns modos de abordá-la ? e sobre a autonomia dos mundos imagéticos.

Qual seria a importância de refletir sobre o “impacto das novas mídias no estatuto da imagem”, tema da próxima Semana da Imagem na Comunicação?

O enigma da imagem “assombra” a humanidade desde tempos imemoriais. Nossa primeira reação diante das novas mídias e das novas feições da imagem técnica foi supor que uma banalização crescente estava em curso. Mas, assim como a fotografia acabou por nos abrir, para além da estrita reprodutibilidade técnica, questões inexploradas como a latência, a espera, o instantâneo, a historicidade dos acontecimentos, a aura, etc., também a natureza digital da imagem e seus regimes de distribuição nos levam muito adiante do que inicialmente se imaginou. As primeiras reações diante das novas imagens saudaram sua libertação do índice e do referente. Hoje, compreende-se mais claramente que elas nos abriram a possibilidade de observar a “vida” das imagens como nunca foi possível antes. Por isso, um teórico como JTW Mitchell tem falado em biopictures. As imagens contemporâneas passaram a ter a reprodutibilidade e difusão inscritas no seu DNA. O papel da mediação humana diminuiu muito na reprodução das imagens. Isso é uma novidade fascinante.

O seu tema será “O rosto e o resto: temporalidade e historicidade das fotografias em face do anacronismo das imagens”, poderia nos adiantar alguns aspectos de sua abordagem?

Este é o nome da minha pesquisa atual. Eu procuro testar o conceito da imagem, e da fotografia em particular, como mistura de tempos (anacrônica, policrônica), como atravessada por formas e sobrevivências de várias épocas. Utilizo esta premissa sobretudo na análise de fotografias de arquivo. Fazendo isso, procuro expandir a noção da historicidade das imagens para além da mera função testemunhal dos vestígios materiais ali presentes. Mas este é um resumo muito abstrato, admito. Meu trabalho mais recente é sobre fotografias de paisagem, e ainda está inédito. No ano passado publiquei com uma colega um texto sobre os arquivos da fotografia política brasileira. Em ambos procuro articular sempre isto que se exibe (o rosto) com isto que falta ou sobra (o resto).

Como as noções de origem em Walter Benjamin e de duração em Henri Bergson ajudam a olhar para imagem contemporânea?

Uma pergunta difícil, pois trabalhei com estes autores para pensar a fotografia moderna (século XX). Bergson foi decisivo ao me fornecer a certeza de que a fotografia não era “instantânea”, que sua experiência comportava uma duração própria, característica dela, que eu chamei de “espera” (ou “expectação”, para quem gosta de termos técnicos). A duração da espera tanto conforma as imagens, quanto constitui os fotógrafos. Neste sentido, o dispositivo fotográfico, que eu chamo de “máquina de esperar”, gera fotografias e igualmente fotógrafos (e por isso há estilos, gestos recorrentes, etc). Os traços desta espera estão impressos na imagem, como vestígios da sua “origem”. Benjamin chama de origem esta marca que assinala na obra tanto à sua proveniência como sua destinação (sua pré-história e sua pós-história, diria ele). Uma força que a sustenta e acompanha. Essa origem é responsável por carregar consigo as possibilidades de sentido que uma fotografia pode acolher: aquilo ela foi e ainda será capaz de comunicar.

O debate sobre se esta origem ainda está presente nas imagens contemporâneas e permanece em aberto. Sempre que um fotógrafo – profissional ou amador – coloca-se diante do mundo com uma câmera digital para “tirar” uma fotografia, acredito que ele ainda está sujeito à mesma cultura do instantâneo que marcou a fotografia analógica moderna. Neste aspecto, pouca coisa teria mudado. E seria possível dizer que não existe, de fato, fotografia “digital”. Mas, por outro lado, muita coisa está acontecendo no campo das artes (onde a opacidade das imagens substitui a sua transparência) e no campo do documental (onde as fronteiras entre imagens fixas e imagens móveis estão se diluindo). Talvez a “duração” e a “origem” para descrever o que se passa não sejam mais noções decisivas e outros chaveamentos venham a se revelar mais produtivos para compreender estas transformações. Ainda não sei.

Há um capítulo seu no livro “Viagem ao Pais das Imagens” que resulta irresistível não lhe devolver a pergunta do título. ? Afinal, o que fazem as imagens quando não estamos olhando para elas?

Acredito que elas dão vida aos sonhos que estão guardados dentro delas. Inventam países, proporcionam viagens, constituem famílias, cultivam desavenças. Uma fotografia de paisagem não é apenas uma “vista”, mas é também a espera por um lugar (para morar, para percorrer, para se ir ou se escapar). Essa espera inscreve na imagem sonhos irrealizados e histórias incompletas. Quando nossa vigilância cochila, os sonhos ganham vida e as imagens fazem suas travessias (ou travessuras). O que mais me fascina no digital, é que esta vida onírica das imagens (que sempre esteve lá) ficou muito mais fácil de ser observada.

Numa entrevista você comentou sobre autores que pesquisam os usos da fotografia na África, na Índia e na Polinésia. Por meio deles estaríamos começando a compreender melhor o que quer e o que pode uma imagem. Poderia explicar melhor essa afirmação?

Durante muito tempo o estudo da fotografia priorizou a tensão entre ícone e índice, e isto marcou os debates e a reflexão teórica a respeito da imagem técnica. Esta primazia está presente em quase toda reflexão produzida na Europa e nos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980. Nestas análises, a fotografia tendia a ser primeiro um objeto de conhecimento do que um objeto em si (isto é, uma “coisa”). A novidade, creio, que começa a aparecer nos anos 2000, é uma outra polaridade, que estava latente, era observada, mas raramente privilegiada: a tensão entre “coisa” e “fantasma”. A tensão entre ícone e índice procura, no fundo responder à pergunta sobre o que queremos das imagens e que uso podemos fazer delas. A tensão entre coisa e fantasma favorece a especulação em torno de perguntas como “o que elas querem de nós?” e “qual nossa responsabilidade diante delas?”.

Quais seriam os índices de futuro de uma imagem fotográfica? Como se dá a luta pela sobrevivência na fotografia?

A espera inscreve sonhos nas imagens. São vestígios de futuro que ela mantém armazenados, encobertos até um tempo preciso que é o nosso “agora”. Aí eles nos procuram, nos visam. É o tempo da sua “revelação” (da sua “redenção, diria Benjamin), em que o contínuo da história se rompe e a imagem ressurge como se houvesse sido destinada a nós, à nossa atualidade. Não há outro instrumento para “despertar” os sonhos de futuro adormecidos nas imagens do que nossos próprios sonhos do futuro. Esta faísca que se lança de imagem do passado até nós (em que nos reconhecemos como visados por ela) é seu índice de futuro. Nosso mandato ético, aquilo que nos diz respeito (como historiadores, artistas, pesquisadores, realizadores que operam com imagens de arquivo), é o despertar destas centelhas, é fazer cintilar estes sonhos, como forma não apenas de compreender o passado mas, principalmente, compreender o que há de obscuro em nosso próprio tempo.

Quais as principais mudanças nas relações entre fotografia e audiovisual nos últimos anos e o que elas poderiam estar sugerindo sobre nossa época?

Como eu disse antes, uma das novidades em curso é a diluição das fronteiras entre imagem em movimento e imagem fixa. Essa tendência foi tremendamente favorecida pela convergência dos dispositivos de armazenamento e manipulação das imagens digitais. Mas agora se acentuou – e migrou do campo dos amadores para o dos profissionais ­– com a coincidência dos dispositivos de captura: as mesmas câmeras full frame sendo utilizados por fotógrafos e cineastas. O cinema já conhecia, há muito tempo, narrativas realizadas a partir de imagens fixas (como em Chris Marker, por exemplo), mas ganham força, tanto no campo da arte como do jornalismo, obras que já poderiam ser chamadas de “fotografias em movimento”. No outro extremo do processo, a “exposição” das fotografias em museus e galerias também alcançou escalas de ampliação que só eram permitidas ao cinema, ao muralismo e à publicidade.

A mídia tradicional da fotografia, aquela que lhe tinha sido particularmente reservada desde o seu surgimento é o impresso (o livro, a revista, o jornal). A fotografia vai continuar a demandar de nós um estatuto ontológico próprio no futuro? A mais antiga das mídias de exibição e difusão de fotografias, o álbum de fotografias familiares, praticamente desapareceu como objeto. Acredito que a resposta a esta pergunta talvez não nos seja dada pela evolução destas duas mídias (a fotografia e o audiovisual), mas pelo que o futuro reservará aos impressos.

Revisão: Cybeli Moraes