“Vestimos toda a humanidade como a extensão de nossa pele”

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Entrevista com Derrick de Kerckhove

Professor do Departamento de Letras da Universidade de Toronto, no Canadá, onde também dirige, há mais de 25 anos, o Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia, Derrick de Kerckhove é autor de diversos livros, entre eles, A pele da cultura: investigando a nova realidade eletrônica (Annablume, 2009). Doutor em sociologia da arte e em língua e literatura francesa, Derrick nasceu na Bélgica em 1944 e foi assistente de Marshall McLuhan. De Kerckhove guarda diversas lembranças do convívio com o autor de A Galáxia Gutemberg e Os meios de comunicação como extensões do homem. “Marshall não gostava de dirigir e não era bom nisto. Eu lhe dava carona para casa muitas vezes em meu carro. Eu lembro de várias conversas, dentre as quais ele explicando como administrar as demandas diárias para dar conferências, palestras, consultoria etc. ‘Se é algo que me interessa, claro que eu aceito, se não é, eu peço 5mil dólares. Isso exclui alguns completamente. Infelizmente, não o suficiente!’”, lembra o professor.

McLuhan nomeu De Kerckhove como seu tradutor oficial para o francês e isso frequentemente custava algumas noites de insônia. “Muitas vezes era acordado no meio da noite para adicionar alguma coisa em minha tradução para o francês de From Cliché to Archetype: ‘Bem Derrick, sobre essa citação de Joyce, com referência a Flaubert, vamos trazê-la para a frente no livro’. Às 2h da madrugada!’”, relata.

Na entrevista a seguir, concedida por De Kerckhove por email, conversamos sobre a herança de McLuhan e os desafios da comunicação em rede.

Quais as lembranças mais importantes de seu convívio com Marshall McLuhan?

Há duas experiências-chave. Uma delas foi ter sido declarado “tradutor oficial”. Um dia quando ele me pediu para revisar inteiramente um esboço de tradução de uma entrevista que ele havia concedido ao Le Monde Diplomatique, ficou muito surpreso quando eu apontei para duas ou três interpretações incertas. Ele olhou diretamente em meus olhos e disse: “Então você conhece meu trabalho?!”. Depois disso ele ligou para o Barrington Nevitt, que estava colaborando em um livro com McLuhan naquela época: “De agora em diante, Derrick será nosso tradutor”. ? E jamais deixei de sê-lo. O segundo grande encontro ocorreu há muito tempo, numa última oportunidade de cinco minutos de conversa com Marshall McLuhan. Eu estava numa fase final – para não dizer suicida – de seis anos de imersão em minha tese, quando McLuhan me disse gentilmente que eu estava indo na direção errada, que a tragédia não era uma forma de arte aristocrática do ancien régime, mas uma estratégia inventada pelos gregos antigos para ajudar a absorver o efeito devastador, social e psicológico, de aprender a ler e escrever. Nos quatro meses seguintes, minha tese foi escrita (450 páginas sobre isso). ? Foi somente no fim que percebi que o ponto realmente interessante não eram as peças francesas ruins do século 18, mas o alfabeto em si. Eu reli A Galáxia de Gutemberg, do McLuhan, quanto ao aumento das individualidades privadas e quanto ? transformação das comunidades tribais em indivíduos isolados que constroem e moldam suas próprias mentes por meio de silenciosas leituras. Ainda seguindo McLuhan, se o alfabeto desintegrou a comunidade tribal, qual efeito teria a eletricidade, o terceiro grande suporte da linguagem, nas psicologias pessoal e social? Os temas ligados ? inteligência conectiva[1] e ? mente coletiva vieram da aplicação dos estudos de McLuhan e Innis dos princípios condutores ou das bases da eletricidade ? cultura da rede e aos meios cognitivos e sociais.

Quais são as semelhanças e as diferenças entre a aldeia global de McLuhan e a globalização que vivemos na contemporaneidade?

Infelizmente, Marshall estava e continua certo em toda sua avaliação sobre a aldeia global. Não é um paraíso de paz, mas um ninho de ódio e violência, uma situação implosiva que leva as pessoas a ficarem umas contra as outras. “No futuro, metade do mundo vai estar ocupado espionando e informando-se sobre a outra metade”, ele disse, como se isso fosse uma piada. Dê uma olhada no Twitter, no Facebook ou no YouTube: uma conversa global que se alimenta do que o outro está fazendo. A globalização não é uma questão primeiramente econômica. Este é o modo usual como as pessoas a vêem. Mas seria mais esclarecedor ver isto como uma questão psicológica e social. A globalização é o quadro da nossa metamorfose, de uma sociedade de indivíduos e de massas para uma sociedade em rede, como Manuel Castells demonstrou amplamente. Castells lê o contrato global em palavras miúdas, no detalhe; McLuhan oferece uma grande imagem, um grande desenho. Por exemplo, existe essa idéia de que o Sputnik, ao circular ao redor do planeta em 1957, tenha deixado a natureza obsoleta e tenha transformado a Terra em uma forma de arte… Este é exatamente o lugar para onde estamos indo agora. Literalmente “programando o planeta”, caminhando para um rápido desaparecimento.

Você disse que McLuhan o ensinou a pensar e viver em tempo real, o que significa isso?

McLuhan estava sempre falando sobre o presente. Apesar de ser profundamente informado sobre o passado, ele estava mais interessado em observar os fenômenos contemporâneos. Uma peculiaridade da sua honestidade intelectual é o fato de que ele nunca se aventurou muito genericamente nem muito precisamente sobre o futuro, seguindo seu próprio preceito: “Para ser um bom profeta, nunca faça prognóstico de nada que já não tenha acontecido”. Como professor, ele me deixava excitado porque podia entrar na aula com um jornal e começar o curso abrindo o jornal ao acaso e parar aleatoriamente em qualquer artigo ou item que chamasse a sua atenção; então, perguntava para a turma: “Agora, o que este item diz sobre a nossa situação com relação a ……………….” (complete o espaço em branco com palavras como transporte, liberdade civil, publicidade, televisão, absurdos em pauta, qualquer coisa que fosse pertinente naquele momento). Toda a idéia de ensino de McLuhan era chamar atenção dos seus alunos e ouvintes para as exatas condições em que eles estavam vivendo. Eram cursos de conscientização social e pessoal. Ele também repetia que no mundo do replay instantâneo, “todos os tempos são AGORA”. 30 anos após a sua morte, os franceses, logo eles, inventaram a palavra présentisme para criticar – e condenar, é claro – os jovens que vivem no presente sem muita preocupação com o que está para acontecer amanhã ou com uma memória muito precisa do que aconteceu ontem, ainda que isso atualmente aconteça a eles pessoalmente.

Por que a cultura digital seria a fase cognitiva da eletricidade?

Esta é a segunda fase da conquista da eletricidade sobre nossas vidas, nossos corpos, nossa linguagem, nossa mente e nossa cultura. Assim como antes nós fomos vítimas inocentes e fomos dominados pela escrita, agora estamos sendo sujeitados globalmente pelo avanço da eletrônica.? A primeira fase da eletricidade foi muito material. Ela trouxe aquecimento, luz e energia e transformou a noite em dia, alterando muitos padrões e alterando o ritmo das nossas vidas. Quando se deparou com a linguagem nas linhas do telégrafo, a eletricidade já estava cortejando a informação. Agora, na segunda fase, que é digital, a eletricidade está se tornando a informação, e por isso está alcançando uma qualidade cognitiva que realmente não tinha como alcançar antes da digitalização. Nós já entramos na terceira fase, que é mais notadamente cognitiva ? medida que os meios sociais trazem as relações e as comunicações para a linha de frente do conhecimento humano. A próxima fase provavelmente será imaterial, mas lá a eletricidade já terá dado lugar ? mecânica quântica e ? comunicação quântica.

Você disse que nunca foi dado ao sentido do tato a posição de honra que este mereceria em nossa sensibilidade, mas que a realidade virtual está mudando isso. Por quê? Que consequências sociais podem advir disso?

O mais belo aforismo de McLuhan – geralmente esquecido – é o seguinte: “Na era da comunicação instantânea, nós vestimos toda a humanidade como a extensão da nossa pele”. Esta é a consequência social da mudança entre o ponto de vista e o ponto de referência física (point of being)[2]. Quando nós acompanhamos com angústia os desdobramentos na Líbia e no Japão, ou com uma excitada ansiedade o jogo de futebol entre Argentina e Brasil, nós estamos tomando parte no drama humano de um modo que jamais foi possível antes, com a possível consequência de que, tanto política quanto socialmente, as pessoas no mundo tragam a necessidade, o requerimento e a exigência de que sejam tomadas quaisquer atitudes necessárias para estabelecer uma paz duradoura e uma distribuição igualitária de bens e serviços. Eu acredito nisso profundamente tão somente porque acredito na evidência apresentada pela história das cidades. Elas também passaram por momentos de grandes sofrimentos para, eventualmente, alcançarem uma situação estável. Mas antes de você chegar lá, você precisa sentir a necessidade nas suas vísceras e essa necessidade deve ser estendida e compartilhada pela maioria das pessoas, como aquelas que, mesmo correndo risco de vida, saíram ? s ruas em Túnis, na Cidade do Cairo, e em Trípoli.


[1] Em outra entrevista, perguntado sobre as diferenças entre seu conceito de inteligência conectiva e a inteligência coletiva de Pierre Levy, De Kerckhove respondeu: “Pelo pensamento eu compreendo o mundo, pelo espaço o mundo me compreende. A nova possibilidade é: eu compreendo o mundo, o mundo me compreende, sem exclusão, juntos. E cada indivíduo que compreende o mundo comigo partilha da minha inteligência, da minha consciência conectiva. É diferente da emergência de uma inteligência coletiva, como a de que fala Pierre Levy. Se quisermos exemplificar, é a mesma diferença que existe entre Freud e Jung. Jung criou o inconsciente coletivo e não pôde fazer nada com ele. Não pôde aplicá-lo nem fazer análise. Pôde apenas produzir clichês e grandes mitos que são imagens coletivas. São boas para a análise literária, a análise das artes, não sou contra, mas de nada servem para a compreensão da consciência privada, para a qual Freud contribuiu muito mais. A inteligência conectiva tem aplicações reais, não é teoria. Mas quanto a mim quero dizer que o conectivo é o conecticial. Com minha pequena máquina [apontando para um netbook] posso me conectar com as pessoas com quem trabalho e posso trabalhar ? distância ? maneira do face a face.

[2] Para De Kerckhove, point of being é o ponto de referência física em um meio cercado de projeções eletrônicas que permite que as pessoas continuem sendo elas mesmas enquanto seus sentidos estendidos tecnologicamente operam em todo o planeta. O point of being é a sensação física de estar em algum lugar, uma experiência tátil, não uma experiência visual, ambiental e não frontal, compreensiva e não exclusiva. O point of being, apesar de distante da realidade como ponto de vista, torna-se o ponto de entrada para compartilhar o mundo.

Tradução: Bruno Leites e Juliana Recart.

Revisão: Cybeli Moraes

  1. Chaiane Bitelo

    Interessante a forma como De Kerckhove explica a globalização a partir da idéia de aldeia global de Mcluhan: “A globalização não é uma questão primeiramente econômica. Este é o modo usual como as pessoas a vêem. Mas seria mais esclarecedor ver isto como uma questão psicológica e social. A globalização é o quadro da nossa metamorfose, de uma sociedade de indivíduos e de massas para uma sociedade em rede, como Manuel Castells demonstrou amplamente”.