Hoje vamos conversar um pouco sobre tempo, espaço, rituais e a pandemia. Uma reflexão, creio, cara a diversos leitores e que pode refletir sobre algo que estejamos vivenciando juntos, mesmo que separados.
Rituais e pandemia
Fora da situação pandêmica, imaginemos uma reunião do TCAv – segunda-feira, 17h30min, sala D416, UNISINOS, São Leopoldo. Um membro do grupo mora e trabalha em Porto Alegre, para ir à reunião ele precisa sair do trabalho às 16h, ir até a estação do Trensurb, pegar o trem e, cerca de 40 minutos depois, ele estará em São Leopoldo, na estação UNISINOS, onde pegará um ônibus circular até o campus. Se tudo der certo, ainda dá tempo de ir ao banheiro e pegar um café. Para poder sair às 16h, ele teve que trabalhar uma hora a mais na sexta-feira e chegar uma hora antes na segunda-feira, para não ficar devendo horas de trabalho. O trabalho cansativo, problemas em casa, contas… como esse membro do TCAv deixa tudo isso para poder se concentrar na reunião e na discussão? Além da carga volitiva, há o ritual – essa uma hora e meia de deslocamento entre o trabalho e a UNISINOS, onde, mesmo que não pense conscientemente, corpo, mente e alma se preparam para uma outra atividade. Um entre atos.
Por mais que alguns cultos religiosos tentem trocar a vivência por forma, diversas correntes antropológicas afirmam que o ser humano é um ser ritualístico; ciclos, datas, formas – vamos desenhando atos que nos permitem concentrar e (tentar) experenciar as vivências da melhor forma possível, consciente e inconscientemente – a celebração de virada do ano talvez seja um dos mais relevantes atos ritualístcos nesse sentido.
A pandemia nos trouxe uma outra relação com o tempo-espaço. Estamos constantemente em todos os lugares, ao mesmo tempo. Pensemos na mesma reunião do TCAv, no mesmo membro que está em Porto Alegre. Estando em tele-trabalho ele não precisa mais compensar duas horas de trabalho, só a meia-hora entre as 17h30min e às 18h. As vezes nem isso, ele está resolvendo um problema, ou aguardando um e-mail, em uma janela do computador ele se conecta à reunião do TCAv, mas constantemente troca a janela para sua caixa de e-mails. Em web-reuniões é possível estar em duas reuniões ao mesmo tempo, saímos do trabalho, para as aulas, para conversas de família em segundos, exigindo mais da nossa capacidade consciente de concentração, sem contar com o auxílio da camada inconsciente e sua ativação (ou apaziguação) via ritualística.
Tempo e espaço
O tic-tac do relógio talvez seja, hoje, mera figura de linguagem – nosso tempo é medido de forma digital e silenciosa. Apesar disso, ainda somos escravos de Cronos, guiados pela perspectiva do tempo que passa, agendas, horários, prazos, datas. Provavelmente nos façamos mais escravos do que realmente somos, explico: temos de lidar com nossa finitude e, de acordo com a filosofia de vida que melhor nos aprouver, fazer nossa vida valer a pena, ter sentido, aproveitar…
Compreendemos o tempo como uma estrada pela qual passamos, ele enquanto elemento estático, uma régua, linha, sobre a qual nossa existência desliza, passa e escorre. Em uma tendência própria da humanidade, tentamos estender essa percepção a todos os aspectos da vida, ao invés de buscarmos o equilíbrio entre existência e tempo, acabamos por tentar compreender (e aprisionar) tudo sob a égide da linearidade temporal. Antes, agora e depois; passado, presente e futuro; tese, antítese e síntese; a + b = c. Tudo em linhas, da esquerda para direita, que outrora designavam condensações de pensamento e, em algum momento, passam de fórmulas a fôrmas, conformando o pensamento, sobretudo ocidental.
O filósofo vitalista Henri Bergson propõe que essa compreensão de tempo é fruto da limitação que a humanidade impõe ao tempo, limitando-o à espacialidade física a que a existência humana está sujeita. De acordo com ele, esse tempo espacial, mensurável e quantitativo, não deve ser confundido com o tempo, uno, indivisível e qualitativo. Esse tempo é vivido, ele guarda o virtual, a potência da existência que dura em diversas atualizações, materialidades, que são as expressões e manifestações do tempo no tempo espacializado. Ele atravessa a humanidade. Essa perspectiva é cara ao TCAv, a partir dela que buscamos nossos problemas de pesquisa, a partir da compreensão do que dura e a assunção do método intuitivo bergsoniano.
Reflexões
Assim como tempo e espaço têm diferentes naturezas, devemos assumir nossa humanidade e compreender que estamos sujeitos a ambos de acordo com nossa existência e suas manifestações sobre nós. Devemos refutar a tendência acalentadora de nos guiarmos pelo mais fácil e não permitir confundir os reinos de tempo e espaço.
A ritualística talvez pertença a ordem do espaço e seja portal ou chave para experimentarmos o tempo. As experiências de coalescência de aspectos de nossa vida durante a pandemia evidenciam que não suportaríamos uma experiência plena do tempo sobre nós – nós não temos estruturas suficientes para suportá-lo. Isso não significa que devamos limitar tudo à espacialidade, seria tomar o caminho mais curto, insuficiente para a nossa sede por viver. Longe de dizer que Bergson está errado, proponho, apenas, que apliquemos equilibradamente seus ensinamentos; nossa mente não está pronta para viver em plena ativação, experenciando o tempo vivido sempre. Nós vivemos espacialmente e necessitamos dele para contornar nossas limitações. Não devemos, contudo, limitar as nossas observações do mundo, as nossas limitações e pequenices.
O TCAv, ao apropriar-se de Bergson como chave de leitura para a compreensão de seus objetos de pesquisa e a partir de seu método intuitivo, manifesta uma forma equilibrada e saudável da aplicação de sua filosofia.
Texto: Lucas Mello Ness
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