Em mais uma edição do “Minha Pesquisa no TCAv”, série que apresenta as pesquisas em andamento dos mestrandos e doutorandos da linha de pesquisa Mídias e Processos Audiovisuais e também expõe reflexões relativas à presença das audiovisualidades e da tecnocultura nos objetos empíricos da pesquisa. Hoje o trabalho a ser discutido será o, até então, intitulado de: Performatividade de Gênero: Corporalidade, sexualidade e interseccionalidade em Pink or Blue.
Primeiramente, uma breve apresentação: sou a Andressa, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação na Unisinos, na linha de pesquisa Mídias e Processos Audiovisuais, integrante do grupo de pesquisa TCAv e bolsista CAPES. Sou formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, além disso, curso a Pós-Graduação em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Inicialmente, ao ingressar no mestrado, meu projeto se propunha a analisar a representação de lésbicas butches (que não performam feminilidade) em obras audiovisuais. Ao longo das disciplinas e conversas com meu orientador, Tiago Lopes, realizamos uma revisão do projeto e nele foi redefinido o objeto empírico de análise, porém sem nos afastarmos daquilo que era mais central para mim na pesquisa: os estudos de gênero. Dessa forma, chegamos ao curta-metragem Pink or Blue (2017), resultante de uma parceria entre o diretor Jake Dypka e a poeta Hollie McNish, o qual aborda questões de performatividade de gênero como forma de tensionar padrões heteronormativos de determinação de masculinidade e feminilidade. O próprio título, Azul ou Rosa, já nos apresenta — e denuncia — a dicotomia homem/mulher que é foco de debate ao longo dos três minutos de duração do curta.
Entende-se que toda a sociedade tem sua tecnocultura, a qual se atualiza de alguma forma, onde nos deparamos com atravessamentos e contágios de diferentes suportes (independente do formato), técnicas e estéticas que contribuem para uma audiovisualização da nossa cultura. Como afirmado por Montaño e Killp (2015, p. 13–14), é “neste ambiente ressonante, cria-se, faz-se circular, usa-se e apropria-se de construtos audiovisuais como modos singulares de expressão e significação da experiência do mundo”. Todavia, toda imagem que é produzida a partir dessa audiovisualização, é também política. Dessa forma, Pink or Blue aborda questões de performatividade de gênero como modo de tensionar padrões heteronormativos, onde a partir da presença de técnicas e estéticas que performam no curta-metragem buscam por denunciar dicotomias e padrões presentes em nossa sociedade, provocando uma certa ruptura. Pink or Blue, performa a partir de sua própria montagem e tensionamento tecnoestético, carregando em si suas ethicidades de gênero.
A partir do plano expressivo do curta, seus elementos técnicos, estéticos e narrativos, tendo em vista preparar o nosso olhar para incursões mais aprofundadas sobre as construções (tecno)culturais de feminilidade e masculinidade que são dadas a ver em Pink or Blue. No curta-metragem, o dispositivo técnico a partir do qual a obra é experienciada pelos espectadores ganha destaque especial. Sua produção fez uso da técnica de 3D estereoscópico, de forma que o espectador, utilizando óculos de visualização de imagens tridimensionais, pudesse alterar, no âmbito da experiência visual, entre o pink (feminino) e o blue (masculino). Contudo, vale frisar que nesse processo de “tradução” da experiência 3D, a qual foi exibida em Cannes, para a 2D, a qual nos dedicamos aqui a estudar, se tratam de experiências diferentes: no 3D há sobreposição e no 2D há justaposição. No 3D a sobreposição dá de saída a copresença dos dois mundos e cabe a quem assiste, se quiser, separá-los (e o ato de separar é, necessariamente, o ato de fechar os olhos). No 2D a justaposição apresenta dois mundos adjacentes, simultâneos, mas não co-presentes, estão unidos por uma linha que ao mesmo tempo os junta e os separa.
A partir disso, faz-se importante trazer o conceito de montagem espacial, de Lev Manovich (2000), uma vez que o curta-metragem Pink or Blue faz uso dessa técnica. A montagem espacial estabelece um contraponto à montagem temporal, amplamente utilizada e conhecida. Para Lopes et al (2014), a “montagem temporal é a justaposição em sequência de fragmentos imagéticos de modo que o resultado é um fluxo no qual imagens substituem-se umas às outras incessantemente” (p. 3, grifos dos autores), enquanto que a montagem espacial recorre à justaposição dos componentes imagéticos dentro dos mesmos planos ou quadros. Para os autores, a montagem espacial enuncia a visualidade preponderante de ambientes computacionais, principalmente das páginas web, e se intensifica como um sintoma das demandas de trabalho, das formas de sociabilidade e de entretenimento de nossa época, caracterizadas pela fragmentação e pela dispersão. (LOPES et al., 2014).
Um dos conceitos centrais para os debates desenvolvidos ao longo da pesquisa é a performatividade. De forma a nos aprofundar no tópico, recorremos às obras de (e sobre) Judith Butler, uma das principais pensadoras acerca do tema. De acordo com Butler (1988), gênero se trata de um ato performativo: ele não se configura como uma identidade estável, mas sim uma identidade construída através do tempo e da “repetição estilizada de fatos” (p. 519). Ao se afirmar como homem ou mulher, o indivíduo passa a emular características tais como: modo de vestir, de se portar e falar que se assemelham àqueles que também se identificam como homens ou mulheres. Para Butler (2003, p. 21), o indivíduo “ser” um homem ou uma mulher, não é tudo que esse alguém é e isso se dá porque o “gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas”.
Quanto às metodologias utilizadas para análise do objeto empírico, as mesmas ocorrem através da combinação entre procedimentos cartográficos e de dissecação. Optamos por combinar estas formas pois a análise se dará em três momentos: primeiramente é necessário atentar às figuras (pessoas e objetos) que aparecem em cada plano do curta-metragem. Trata-se de um exercício de contemplar e vaguear pelo objeto, como descrito por Canevacci (1997, p. 105) ao tratar da flânerie presente nas obras de Walter Benjamin: “tornar familiar o que é estrangeiro e, ao contrário, estranho o que é familiar”. Como forma de complementar este primeiro exercício, outra autora que também se faz presente é Maria Filomena Molder (2010, p. 35): “a imersão é sempre lucidíssima, mas, como se verá, desprovida de intencionalidade. Está mais próxima de um afogamento: mergulha-se no objeto, é-se submergido pelas águas da verdade”. Essa etapa é importante porque é a partir dela que nos deixamos tocar pelas imagens que nos são apresentadas para podermos compreender e interpretar as metáforas que nos são apresentadas ao longo do curta.
O próximo passo da análise fica por conta do exercício de dissecação, procedimento analítico proposto por Kilpp (2003, 2010), o qual permite adentrar a superfície de objetos audiovisuais. Ainda que o referido procedimento tenha sido formulado para análise de materiais televisivos, aqui, será adaptado para examinar o curta-metragem Pink or Blue (2017). Para tal, a proposta é observar as imagens congeladas, os frames, de forma que possamos “desmontá-las” e, após devidamente exumadas, fazê-las retornar ao seu fluxo natural de fotogramas exibidos em sequência, dando a sensação de movimento.
Em seguida, as agrupamos em constelações, como proposto por Molder (2010). Dessa forma, a geração de constelações significa que esses agrupamentos se dão com a intenção de provocar tensionamentos entre essas imagens, porém, ainda destacando o que ali possuem em comum. No processo, o material é retirado de seu contexto original e reconfigurado para destacar ambiguidades, incongruências e oposições para que possamos dar-lhes novos significados. Até o presente momento, foram articuladas três constelações: sexualidade feminina, corporalidade como instrumento de poder e entrelaçamentos interseccionais.
Na primeira constelação, sexualidade feminina, vamos nos debruçar sobre as imagens que retratam questões como: heterossexualidade compulsória; o ciclo menstrual como algo que deve ser escondido; o desejo sexual das mulheres; e como aquelas que expressam suas vontades sexuais ainda são retratadas como promíscuas.
Na sequência, na constelação corporalidade como instrumento de poder, vamos nos debruçar ao que concerne às corporalidades e como o corpo pode ser um instrumento de poder, mas também de desempoderamento, principalmente quando pensamos nos corpos femininos. Esta constelação tem uma relação muito próxima a alguns temas que Naomi Wolf (2019) traz em O Mito da Beleza. Isso se dá, principalmente, porque o corpo das mulheres foi colocado como uma das formas de se alcançar o “sucesso”, seja na vida profissional ou pessoal. O que a autora trabalha é que, desde que a mulher deixou de ocupar somente o espaço doméstico (diretamente relacionado com o que Betty Friedan trabalhou em A Mística Feminina, em 1963) o patriarcado em aliança com o capitalismo, precisava de uma nova ferramenta de controle sobre as mulheres — espaço atualmente ocupado pela pressão estética, dentre outras formas de opressão.
Por fim, nossa última constelação, entrelaçamentos interseccionais, se concentra como uma maneira de entrelaçamento com as demais. Nela pretendemos discutir temáticas que, além de permear gênero — enquanto categoria sobre mulheres, mas também a comunidade LGBTQIA+ — trata também questões de raça e de classe. Em outras palavras, vamos nos alicerçar no conceito de interseccionalidade para realizar as análises desta constelação. Tais ideias estão presentes nos estudos feministas e de gênero, o que nos permite compreender as desigualdades a partir de um recorte de gênero, raça e classe. Como trazido por Carla Akotirene, “tal conceito é uma sensibilidade analítica, pensada por feministas negras cujas experiências e reivindicações intelectuais eram inobservadas tanto pelo feminismo branco quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens negros” (2019, p. 18).
Trabalhar com a interseccionalidade e com autoras como Carla Akotirene, Angela Davis e Patricia Hill Collins é muito importante para tensionar gênero, raça e classe, pois se pensamos em gênero sem considerar esses outros dois aspectos, acabamos reduzindo o debate somente à esfera de mulheres brancas — e do feminismo liberal. Nossa intenção é trazer um debate plural e, para isso, é preciso considerar aspectos como racismo e recorte de classe, afinal os enfrentamentos que uma mulher branca de classe média alta são muito distintos dos que uma mulher negra de classe baixa passa. E conforme formos adicionando camadas, mais complexidades vão sendo agregadas na vida dessas pessoas, como se elas se identificam como cis ou trans, se são homossexuais, e assim por diante.
No atual momento minha pesquisa se encaminha para a reta final, a partir das considerações e apontamentos realizados durante a banca de qualificação de mestrado.
Texto: Andressa Machado
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
BUTLER, Judith. Performative acts and gender constitution: An essay in phenomenology and feminist theory. Theatre journal, v. 40, n. 4, p. 519–531, 1988.
________, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
________, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1 Edições; Crocodilo Edições, 2019. 400 p. Tradução de: Veronica Daminelli, Daniel Yago Françoli.
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 1997.
KILPP, Suzana. A traição das imagens: espelhos, câmeras e imagens especulares em reality shows. Porto Alegre: Entremeios, 2010. 124p.
_____, Suzana. Ethicidades televisivas. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
MANOVICH, Lev. Database as a Genre of New Media. AI & Soc (2000) 14: 176–183. Disponível em http://link.springer.com/article/10.1007/BF01205448
MOLDER, Maria Filomena. Método é desvio — uma experiência de limiar. In OTTE, Georg; SEDYMAYER, Sabrina; CORNELSEN, Elcio (Orgs.). Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. (p. 27–75)
MONTAÑO, Sonia; KILPP, Suzana. Audiovisualidades, tecnocultura e pesquisa em comunicação. In KILPP, Suzana [et al.]. Tecnocultura audiovisual: temas, metodologias e questões de pesquisa. Porto Alegre: Sulina, 2015.
WOLF, Naomi. O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. 5. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
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