Agamben lançou, recentemente, “Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia”, uma coletânea de seis artigos escritos entre 26 de fevereiro e 13 de abril de 2020, que acompanham o crescimento da doença na Itália até o pico da doença. As suas reflexões não dizem respeito à epidemia, mas ao que podemos entender a partir das reações dos homens a ela. Diz o autor que “trata-se de refletir sobre a facilidade com a qual uma sociedade inteira aceitou sentir-se empestada, isolar-se em casa e suspender suas condições normais de vida, suas relações de trabalho, de amizade, de amor e até mesmo suas convicções religiosas e políticas” e complementa “num certo sentido, o único dado positivo que se pode extrair da situação presente: é possível que, mais tarde, as pessoas comecem a se perguntar se o modo como viviam estava certo”.
É sabido que a implantação de medidas de distanciamento social devido à pandemia do Covid-19 transformou os hábitos, principalmente os digitais, da população. Países como a China, Itália, Espanha, França e Estados Unidos, por exemplo, viram o aumento da utilização de serviços de streaming, ou seja, o consumo de conteúdos audiovisuais online. Antes da pandemia, “o Brasil já figurava entre os dez maiores mercados consumidores desses conteúdos no mundo” e segundo levantamento da Nielsen Brasil, “deixam ainda mais evidente que é um segmento em expansão no País”.
Nessa mesma esteira, a plataforma Youtube publicou o artigo “Watching The Pandemic – O que as tendências do YouTube revelam sobre as necessidades humanas durante o COVID-19“, com base em pesquisas de espectadores de todo o mundo, identificando as suas alterações de comportamento no período de 02/2020 a 05/2020 – momento em que grande parcela da população iniciou o isolamento social e muitos serviços foram temporariamente fechados.
A pandemia global não acabou. Mas, seu início chocante nos permitiu ver uma uniformidade surpreendente nas tendências de conteúdo em todo o mundo. Essa uniformidade ajudou a demonstrar a realidade de nossas necessidades compartilhadas: experimentar um senso de conexão, sentir-se o melhor possível e projetar um forte senso de identidade. O fato de nós, agindo como indivíduos isolados, assistirmos os mesmos tipos de vídeos que outras pessoas do outro lado do mundo para atender a essas necessidades apóia um argumento que a pandemia continua a fazer repetidamente e muitas vezes de forma trágica: não importa o quão diferentes sejamos, somos todos humanos. Dito de outra forma: nós assistimos ao mesmo porque somos os mesmos
Youtube Trends
Tendo como base o modelo antropológico The KR&I Human Needs Model, desenvolvido pela antropóloga cultural Susan Kresnicka, o Youtube reconhece três pilares de necessidades do ser humano, interligados – assim, a plataforma acompanhou (“seguindo centenas de pistas em várias categorias e países, abrangendo milhões de vídeos com bilhões de visualizações totais”) e tracejou dezenas de tendências que parecem retratar as necessidades humanas atendidas de maneiras criativas.
De acordo com a pesquisa, “tanto as necessidades quanto as maneiras como os usuários as tratam se enquadram em um conjunto claro de temas que identificamos com um pouco de enquadramento antropológico cultural. Parece complexo, mas, como você verá, nossa história é visível a olho nu através de gráficos de dados”.
Autocuidado – A regulação da energia física, mental e emocional
Crescimento do conteúdo que fala da manutenção das necessidades biológicas e emocionais mais básicas. A ansiedade e a incerteza desencadeadas pela pandemia global levaram as pessoas em busca de ferramentas para enfrentar: a saber, vídeos relacionados à alimentação, exercícios, relaxamento e até sono.
O vídeo para iniciantes de Yoga With Adriene, publicado em 2013, ganhou mais de 5 milhões de visualizações desde 15 de março.
Joe Wicks, da Body Coach TV, foi uma das estrelas do YouTube para exercícios em casa. Seus exercícios caseiros para toda a família eram as principais transmissões ao vivo semanais no Reino Unido.
Conexão social – a necessidade das pessoas se envolverem através de instituições, atividades compartilhadas ou diretamente entre si
Como o distanciamento social e o isolamento restringiam severamente a capacidade das pessoas de se conectar, a tecnologia estava lá para ajudar a preencher a lacuna. Os espectadores do YouTube usaram o vídeo para interagir uns com os outros direta e indiretamente, às vezes de maneiras diferenciadas: até mesmo apenas participar de uma tendência crescente de fazer café pode fazer alguém se sentir mais conectado a outras pessoas.
O Museu Van Gogh na Holanda carregou um tour de várias partes do museu em 4K em 17 de março. A primeira entrada, um tour pela galeria de autorretratos, acumulou mais de 100 mil visualizações.
O vídeo mais visto no canal Handmade Life neste ano é este tutorial carregado em 2017 que demonstra como fazer uma máscara facial. Recebeu 99% de suas visualizações este ano.
Identidade – Nossa ideia e experiência de nós mesmos
As pessoas procuraram se reafirmar e se redefinir à medida que a pandemia interrompia planos, empregos e uma miríade de coisas que desempenham um papel na autopercepção. O vídeo provou ser uma maneira única de as pessoas expressarem quem são e quem podem se tornar – por exemplo, aprendendo uma nova habilidade.
O tutorial de corte de cabelo de Brad Mondo foi visto mais de 1,5 milhão de vezes. As exibições de tutoriais de corte de cabelo atingiram o pico no ano em abril.
A recitação do Papa do “Urbi et Orbi” no final de março, enquanto a pandemia aumentava, foi um momento cultural que levou ao maior crescimento de assinantes em um único dia para os canais do YouTube do Vaticano.
Para finalizar o presente texto, retomo Agamben (2020, n.p), que diz:
o que preocupa não é tanto, ou não somente, o presente, mas o depois. Assim como as guerras deixaram de herança à paz uma série de tecnologias nefastas, dos arames farpados às centrais nucleares, também é muito provável que se tente dar continuidade, mesmo após a emergência sanitária, aos experimentos que antes os governos não conseguiam realizar: que universidades e escolas sejam fechadas e que se deem somente aulas on-line, que cessem finalmente os encontros e as conversas por razões políticas ou culturais e que haja apenas troca de mensagens digitais, que onde quer que seja possível as máquinas substituam todo contato – todo contágio – entre os seres humanos.
Fonte:
AGAMBEN, Giorgio. Reflexões sobre a peste, ensaios em tempo de pandemia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.
https://www.youtube.com/trends/articles/covid-impact/
Autora: Aline Corso
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