Para dar sequência as discussões sobre os impactos da pandemia nas formas como nos relacionamos a produção audiovisual e consumo destas, voltamos nosso olhar para outra manifestação interessante. Se no texto anterior falamos sobre essa manifestação na produção cinematográfica, dessa vez olhamos para duas outras formas de audiovisualidades, a televisão e o videogame.
Em um tradicional programa esportivo, de veiculação nacional, o Esporte Espetacular, temos visto uma espécie de intromissão de outro tipo de mídia.
Os programas esportivos tiveram que se reinventar de diversas formas para não parar durante a pandemia, e os motivos são óbvios: o esporte parou. Apesar de, por conta desta parada, estes programas terem adotado diversas estratégias, como matérias “de gaveta” e reprises (que voltaremos a falar aqui), uma forma de esporte pouco convencional, em especial nos canais de TV aberta, não foi afetado diretamente pela pandemia, os e-sports.
No programa Esporte Espetacular durante o mês de maio houve a disputa do ‘Controle de Ouro’, alusão a “Chuteira de Ouro”, prêmio dado pela European Sports Media para o atleta que mais fez gols na temporada europeia. A disputa nacional se deu em uma arena de futebol jogado no videogame, entre jogadores de futebol de clubes brasileiros. Um aspecto interessante é que estes jogadores, como jogavam com versões digitais de seus times, puderam jogar com avatares no jogo que representavam eles mesmos, então pudemos ver a cena inusitada do gol do Gabigol controlando sua versão digital.
A transmissão de jogos de e-sports não é nenhuma novidade, existem canais e programas específicos dedicados a isso na TV por assinatura e na internet via streaming, entretanto, esse aparecimento em um canal aberto causa uma certa estranheza e nos leva a perguntar: Estamos assistindo TV ou à um videogame? As relações que estabelecemos com o jogo de videogame transmitido e narrado pela televisão são mais parecidas com o assistir ou com o jogar? Quais estéticas são incorporadas de cada linguagem? A transmissão de TV atravessa o videogame ou o contrário?
Algumas questões estéticas das transmissões esportivas tradicionais fazem parte da construção dos transmissões de e-sports, como a presença de locutores e comentaristas, inclusive em jogos como os de futebol, locutores esportivos da TV são contratados para gravar sequências de áudio para os jogos. Outras dimensões audiovisuais são completamente distintas, como a utilização de câmeras subjetivas e de dentro do campo – câmeras que possuem muito mais liberdade que uma colocada em um estádio. Outra característica interessante é a utilização de múltiplas telas simultâneas, tanto para dar a perspectiva de cada pessoa que está jogando (reproduzindo as telas dos jogadores), assim como imagens da própria pessoa que está jogando. Dessa forma, podemos pensar no conceito de estado-televisão, que “são modos diferentes de recepção que agem sobre os sentidos que são atribuídos a imagens em movimento, as quais foram, inclusive, concebidas para serem exibidas em um ou em outro ambiente, ou seja, tendo em conta a incidência do ambiente de recepção sobre os sentidos”. (KILPP, 2015). Portanto, não há uma ruptura a ponto de não estarmos mais assistindo tv, ou outra tv, ainda é televisão.
Também é importante pensar que não estamos inseridos em nenhuma dimensão do jogar. Jogar implica ação (GALLOWAY, 2008). De forma alguma entendemos o telespectador como um agente passivo, mas os tipos de ações, interações e leituras disponíveis a quem está olhando o jogo pela televisão são muito diferentes das de quem está jogando. Ainda assim, a relação que se estabelece é de uma experiência estética muito diferente de ver um jogo (no caso de futebol) como se estava acostumado.
Apesar das diferenças entre as duas duas formas de transmitir jogos (analógicos ou digitais) para uma audiência, na televisão aberta são adotadas algumas estratégias distintas das plataformas de streaming, um reapropriação da própria linguagem. Dessa forma, entendemos que estratégias de comunicação que foram apropriadas por plataformas de transmissão de jogos digitais, são reapropriadas as próprias lógicas da televisão, adaptadas ao novo contexto, mobilizando afetos e atenções que são ao mesmo tempo diferentes e semelhantes, causando estranheza em quem está acostumado as transmissões de esportes tradicionais e também a quem acompanha os e-sports, em um duplo atravessamento.
O distanciamento social tem provocado diversos efeitos na esfera das audiovisualidades, tornando porosas fronteiras entre territórios antes considerados muito distintos. A relação que o público tradicional da televisão têm com a transmissão de e-sports certamente ainda é uma incógnita, mas dificilmente estes serão vistos como os mesmos olhos que eram vistos pré-pandemia. Esses atravessamentos são uma marca da tecnocultura, em que, enquanto o autor deste texto estava redigindo o mesmo, acompanhava um emaranhado de telas na TV aproveitando um jogo de basquete (digital).
Texto: Leonardo Andrada de Mello
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