Quando estamos passando por uma situação difícil, temos o desejo de nos transportar para algum momento mais feliz, agradável ou até mesmo simples de nossas vidas. É possível fazer isso através do consumo de arte, seja de filmes, peças, exposições, shows e música. E na pandemia de Covid-19, impossibilitados de sair de casa, inevitavelmente ficamos mais nostálgicos, o que gerou uma procura significativa por músicas antigas em plataformas de streaming de áudio.
Em um levantamento realizado em abril de 2020 — início da pandemia -, o Spotify constatou um aumento de 54% de uma semana para outra na busca por músicas nostálgicas. Faixas como “Tempo Perdido”, do Legião Urbana, “Bohemian Rhapsody”, do Queen, “Apenas Mais uma de Amor”, de Lulu Santos, “Sweet Child O´Mine”, dos Guns N´ Roses, e “Se?”, do Djavan e “Girls Just Want to Have Fun”, da Cindy Lauper são algumas das músicas que tiveram aumento significativo de reproduções na plataforma. Além disso, cresceu também o número de playlists criadas por usuários contendo músicas com esse recorte saudoso e reflexivo.
O teor dessa busca por músicas antigas na pandemia varia de forma contraditória: enquanto a procura por canções otimistas e esperançosas aumentou, a pesquisa por faixas mais melancólicas também cresceu, principalmente no Brasil, que é o país que mais tem escutado mais músicas tristes na quarentena. Podemos relacionar esse comportamento com o que o filósofo Henri Bergson explica em seu livro Memória e vida (2006), em que afirma: “Ou o presente não deixa nenhum vestígio na memória, ou então ele se desdobra a cada instante, em seu próprio jorramento, em dois jatos simétricos, um dos quais cai para o passado ao passo que o outro se lança para o porvir” (p. 50).
Em entrevista ao Estadão, o pesquisador musical e especialista em cognição sonora Jônatas Manzolli acredita que a música e outras manifestações culturais possam gerar uma sensação de conforto devido à memória ativada através delas: “As memórias induzidas pela música podem nos curar. A escuta musical pode ser uma forma de desenvolver a nossa musculatura emocional”. Jônatas ainda acrescenta que o isolamento social nos coloca numa situação de suspensão dos sentidos, e por isso “a pressão seletiva de termos que nos reconfiguram em espaços mínimos com informação redundante, todo dia, nos induz a releituras de fatos e memórias”.
Para Bergson, o passado que retorna à consciência é aquele que é útil para compreender o presente e prever o futuro:
“Se uma percepção evoca uma lembrança, é para que as circunstâncias que precederam e acompanharam a situação passada e seguiram-se a ela lancem alguma luz sobre a situação atual e mostrem como sair dela. São possíveis milhares de evocações de lembranças por semelhança, mas a lembrança que tende a reaparecer é aquela que se parece com a percepção por um certo aspecto particular, aquele que pode esclarecer e dirigir o ato em preparação” (2006, p. 62).
Portanto, pode-se considerar que este fenômeno da procura por músicas antigas em plataformas de streaming na pandemia é uma tentativa dos ouvintes de lidar com o complexo momento que estamos vivendo através da evocação de imagens-lembrança por meio da música, seja na busca por uma sensação de conforto, seja na intenção de refletir sobre a realidade atual.
Texto: Ananda Zambi
Referências:
BERGSON, Henri. A memória ou os graus coexistentes da duração In: Memória e Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (p. 47–70).
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