Canevacci problematiza a representação da memória ubíqua no cinema

No início de sua palestra, realizada na noite de quarta-feira, 17 de agosto, no Auditório Pe. Bruno Hammes, da Unisinos, campus São Leopoldo, o pesquisador italiano Massimo Canevacci comentou a preparação para o evento. Há alguns dias, ele havia montado os slides de sua apresentação; mas, na terça-feira, véspera da conferência, percebeu que faltavam algumas coisas. Na tentativa de consertar esse erro, decidiu dizê-las no final da exposição. No entanto, conforme alertou o público presente, isso iria contradizer tudo. O comentário, em um primeiro momento, pode parecer banal; mas revela uma das perspectivas de pesquisa que Canevacci mais defende: a indisciplina. Assim, indisciplinado, o antropólogo manteve postura profissional ao longo de uma hora para, nos últimos minutos, criticar o que já havia dito. Em Memória Ubíqua, terceiro encontro da Semana da Imagem na Comunicação UNISINOS desse ano, professores e alunos de graduação e pós-graduação ouviram o palestrante falar sobre tópicos aparentemente distantes entre si, mas que, sob o seu olhar, ganham outro sentido.

O italiano trouxe duas imagens para mostrar. A primeira é de um olho dilatado, o qual representa o desafio da pesquisa: aprender a olhar o objeto e também a si próprio. “No momento em que eu faço pesquisa na Comunicação Visual, eu faço pesquisa também sobre mim mesmo e sobre a minha maneira de olhar.” Para Canevacci, o pesquisador precisa se transformar em corpo cheio de olhos. “A capacidade de olhar é articulada e difundida no teu corpo.” A segunda imagem, por sua vez, é o título da conferência. O palestrante começou a explorá-lo a partir da palavra ubíqua para mais adiante abordar a memória ubíqua representada na TV e no cinema.

A ubiquidade e a dimenticanza attiva em constelação

A ubiquidade, segundo Canevacci, é um dos conceitos mais importantes para pensar a Comunicação Digital. Ele designa a mistura das noções de espaço-tempo nas experiências com as tecnologias. Com isso, multiplicam-se as identidades, caracterizando um sujeito como multivíduo. No que diz respeito à memória especificamente, embaralha as sensações de passado-presente-futuro. Assim, a memória seria irregular e performada. Na platéia, por exemplo, enquanto o palestrante falava, alguns alunos utilizavam o celular para acessar as redes sociais: estavam no auditório fisicamente, mas deslocaram-se para outro espaço sem terem levantado de suas cadeiras; eram acadêmicos ouvindo uma palestra, mas, nesse deslocamento, assumiram outra identidade no Facebook, no Instagram, no Twitter, como colega, amigo, namorado; publicaram textos e fotos ao mesmo tempo em que Canevacci apontava as diferenças e semelhanças entre ubiquidade e simultaneidade; perceberam a fala do palestrante e os pequenos diálogos com alguém via chat. Para esses indivíduos, as lembranças da conferência podem ser permeadas pelas lembranças dessas experiências nas redes sociais. Descobriram naquele dia que essas práticas, aparentemente banais, com que estão habituados, são ubíquas.

Como pesquisador de Comunicação Visual e Cultura Digital, a ubiquidade integra a sua constelação. Em um slide, um planeta do sistema solar era rodeado de conceitos com os quais Canevacci trabalha. Ele comentou alguns deles, proporcionando aos alunos um panorama geral, por assim dizer, de suas abordagens de pesquisa. Para o italiano, cada pesquisador deveria criar a sua própria constelação com os conceitos de que mais gosta. Para refletir sobre memória, por exemplo, trouxe uma citação de Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche. A partir desse filósofo, Canevacci apresentou a idéia de dimenticanza attiva, em italiano (esquecimento ativo, em português).

Nietzsche fala uma coisa muito simples… Toda a pré-história e história da humanidade são baseadas sobre a crueldade da memória. A memória tem um lado de crueldade: fazer mal. A técnica de fazer memória é baseada sobre a dimensão sinistra, ou seja, cruel. O sistema de crueldade é o mais poderoso coadjuvante da memória. Então, ele afirma um outro tipo de perspectiva que eu adoro, que é uma dimenticanza attiva. Isto é, o poder, a capacidade de esquecer algumas coisas.

A memória ubíqua no cinema e na TV

“Quem viu Black Mirror?”, perguntou Massimo Canevacci ansioso pela resposta. Felizes aqueles que levantaram a mão, pois agora são amigos do palestrante. Os que ainda não assistiram à série de TV britânica, exibida no catálogo de atrações da Netflix, receberam uma tarefa. “Quem não viu é, dicotomicamente, meu inimigo. Se você não viu Black Mirror, ou muda de faculdade, ou amanhã vai ver.” Em tom de brincadeira, ele sugeriu que todos assistissem ao segundo episódio, White Bear. Ali, segundo Canevacci, poder-se-ia perceber um tipo de memória diferente com a inteligência digital. Além dessa produção audiovisual, o palestrante apontou exemplos do cinema que problematizam a memória: The Lady From Shanghai, de Orson Welles; Lost Highway e Mulholland Drive, de David Lynch; e Memento, de Christopher Nolan. Com o livro Consumed, de David Cronenberg, fez uma provocação acerca das experiências ocorridas out of body, em inglês (fora do corpo, em português).

Então, se eu tenho uma experiência fora do meu corpo e também fora da minha decisão, da minha autonomia, da minha inteligência, da minha paixão… O que significa isso? Como vai mudar a nossa experiência? Cronenberg, nesse livro, relaciona profundamente, de uma maneira muito perturbadora, a relação do corpo e a tecnologia digital. Uma memória fora do corpo. Que tipo de memória será? Que memória um sujeito vai ter de si mesmo fora do próprio corpo? Então, isso é uma questão fundamental.

O último filme de exemplo constituiu o momento contradição que Canevacci anunciou no início de sua conferência. Trata-se de 8 ½, de Federico Fellini. Na sequência exibida, um personagem enfrenta a memória de sua própria infância com Asa Nisi Masa. Para Canevacci, possui poesia e potencialidade da beleza da memória. “O enigma da memória, de um tipo de memória, de um passado remoto é impossível de esclarecer totalmente até o final.” As imagens mostraram um mágico tentando provar que possui o poder de ler a mente – ou algo assim. Uma assistente escreve no quadro Asa Nisi Masa. Mas o que é isso? Uma invenção infantil – que provoca em que assiste a curiosidade sobre o significado e também o resgate de lembranças da própria infância. Para o palestrante, isso é “A potência de uma memória que é cinema, um artista como Fellini pode desenvolver, porque é baseado sobre qualquer coisa que é absolutamente individual. A nossa relação talvez com a nossa mãe, o nosso pai, a nossa infância e inventar palavras que não tem sentido: Asa Nisi Masa”. Dessa forma, ele contrapôs a dimenticanza attiva, de Nietzsche.

Sobre a cobertura jornalística indisciplinada

O palestrante Massimo Canevacci abordou outros tópicos ao longo de sua exposição. Decidiu-se aqui ressaltar alguns deles, talvez, os principais. Assim como em sua apresentação Canevacci evidenciou o seu olhar de pesquisador; a jornalista evidenciou nessa matéria o seu olhar de repórter, de certa forma, sobre o que viu na conferência. Por isso, compartilha-se a íntegra da palestra Memória Ubíqua – uma vez que as linhas desse texto não dão conta de tamanho aprendizado.


Fotos: Marcelo Gomes e Roberto Caloni

A perspectiva indisciplinar pretende romper os limites de uma universidade, de um departamento ou de uma matéria, aproximando conceitos aparentemente distintos, mas que possuem algum tipo de relação lógica na pesquisa.

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