Em Diário 1973-1983 e Diário Revisitado 1990-1999, David Perlov – cineasta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, criado em Belo Horizonte e São Paulo e naturalizado israelense – registra o seu cotidiano de tal forma que fala mais dos outros do que dele mesmo – como a família e os amigos – e mostra mais o contexto do que as experiências pessoais diárias – como a sociedade brasileira e suas marcas. A constatação contém a perspectiva de que a memória, nesses documentários, evidencia a relação do eu com o social ou da experiência subjetiva com a rememoração história. Essa foi a reflexão do pesquisador César Guimarães da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) na palestra que deu início à 14ª Semana da Imagem na Comunicação Unisinos. A abertura do evento reuniu acadêmicos de graduação e pós-graduação na noite de segunda-feira, 15 de agosto, no Auditório Pe. Bruno Hammes. A conferência envolveu os alunos de Comunicação, Comunicação Digital e Realização Audiovisual em um diálogo com Guimarães sobre a memória na escritura cinematográfica de Perlov.
O palestrante trouxe três questões para contribuir com a problematização da temática da Semana da Imagem desse ano – Memória das Imagens, Imagens da Memória. De modo geral, abrangem um texto de Guimarães, escrito por ocasião da mostra e seminário David Perlov – Epifanias do Cotidiano, realizada em março de 2011 na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. O estudo de caso sobre os diários cinematográficos de Perlov rendeu tópicos de abordagem sobre: 1) a experiência subjetiva e a rememoração história; 2) a visibilidade da sociedade brasileira no documentário; e 3) o estilo peculiar do documentarista. O público acompanhou a leitura do pesquisador intercalada à exibição de fragmentos dos diários. De certa forma, esse formato de apresentação lembrou o cineasta em questão. Perlov registrou ao longo dos anos essas imagens do cotidiano para muito tempo depois narrá-las, comentá-las, relembrá-las. Guimarães, por sua vez, comentou os fragmentos deixando o seu olhar de pesquisador sobre as imagens. Assim, guiou a apreensão das diferentes cenas assistidas.
No primeiro fragmento, viu-se o início de Diário 1973-1983 em que Perlov explica porque começou a gravar o cotidiano. No segundo fragmento, a volta para São Paulo em viagem de férias, depois de 20 anos longe do Brasil – momento em que decide fazer as pazes com a cidade em que cresceu para dizer adeus. No terceiro, a estadia prolongada na capital paulista antes de partir para Belo Horizonte. No quarto, a visita dos amigos Julio e Fela na sua casa em Israel. No quinto e último fragmento, viu-se a volta do documentarista para sua casa de infância – um registro de Diário Revisitado 1990-1999. São ruas, casas, prédios, janelas, chuva, neblina, garoa, amigos de Perlov e até mesmo uma pintura de Tarsila do Amaral que revelam o que há para ser visto atentamente para além da banalidade das pequenas coisas. “Ao filmar o cotidiano da vida brasileira, ele apanha alguma coisa que entre nós é fortemente calcada, escondida, invisível”, aponta Guimarães.
O pesquisador usou a metáfora da banda de Moebius para assinalar uma particularidade da obra de Perlov: a relação com o outro, com a vida social. Um tipo de escrita cinematográfica que lança para o que está fora, para a exterioridade. Além disso, torna-se evidente que o sujeito é alterado nessa experiência. “A memória é uma operação não de reconhecimento, mas de alteração”, observa Guimarães. Seguindo o raciocínio, quanto mais se tenta retornar ao passado, mais se é projetado ao futuro, justamente porque se descobre como outro – em reação de estranhamento. Quando permitida tal experiência, ocorreria o que o ele chama de desapossamento de si. “Mas para que isso ocorra é preciso que alguma coisa seja feita com a imagem: tem a ver com a letra, com a voz, com o comentário”, explica. Em sua palestra, a idéia do que se entende como memória foi desconstruída, de certa forma. “Nem encontrar o passado nem se reconhecer naquilo que foi um dia a sua experiência”, salienta. A partir da obra de Perlov, compartilhou a sua contribuição. “Trata-se, portanto, menos de um passado que governaria e decidiria o presente de antemão, desde sempre, do que uma operação que leva os eventos do passado à retornarem no futuro, alterados e reescritos”, sintetiza César Guimarães.
A palestra A dupla face da memória: experiência subjetiva e rememoração histórica encerrou com uma sessão de perguntas, do qual participaram professores e alunos. Para além das reflexões provocadas em sua apresentação, ele falou sobre a memória social e a função do cinema de dar imagem a essas coisas que não teriam visibilidade não fosse o olhar do documentarista; sobre como Perlov conseguiu cruzar a sua história pessoal com a história do Brasil; sobre o interesse na obra do cineasta israelense e a performance de David Perlov nos diários. Também recebeu tensionamentos sobre nostalgia e imagens do esquecimento.
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