ENTRE ARQUIVOS E PLATAFORMAS; A MEMÓRIA TELEVISIVA BRASILEIRA RESISTE?

Profs. Dr. Gustavo Fischer, da Unisinos, Presidente do GP Televisão e Televisualidades da Intercom; Dr. Francisco Machado Filho, da Unesp, Vice-Presidente do GP; Professoras Dra. Suzana Kilpp, da Unisinos e Dra. Miriam Rossini da UFRGS.

Em uma realidade audiovisual multiplataforma, a memória televisiva brasileira resiste? E de que memória estamos falando? A memória nas mídias ou a memória das mídias, em especial quando as mídias tentam memorializar-se, tentam construir sua própria memória nos ambientes online? Em outras palavras, como estão se construindo diferentes arquivos e modos de acesso a conteúdos televisivos que já se dissiparam no fluxo original da própria televisão.

Este o fio condutor do debate que deu sequência à série de lives promovidas pela Cátedra Intercom no ano de 2021 e que foi produzido pelo GP Televisão e Televisualidades da entidade. O encontro foi reproduzido no podcast PapoCom, episódio n. 8, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM-UFC).

Reprodução PapoCOM

A fala da Prof. Dra. Suzana Kilpp, que abre o debate, abordou acontecimento, memória e história. O que é a TV? Como ela explica a si mesma? Como produz sentidos? Ela parte da afirmação de que “a televisão é uma coisa”. Suzana traz uma perspectiva sobre sua pesquisa que dedica à TV desde os anos 1990, onde aborda aspectos relacionados a politicas relacionadas à produção e distribuição de conteúdo televisivo, a relação das tecnologias e o impacto sobre as políticas públicas e esforços das iniciativas privadas para acompanhar o ritmo de produção e distribuição de conteúdo atualmente. “Não se trata de progressão tecnológica, mas de outra coisa em relação ao impacto da internet”. Para a Prof. Suzana Kilpp, é necessário reconhecer a existência contemporânea de formatos de telas, dispositivos móveis, monitores de tv, computadores, já que em cada um desses formatos é possível assistir aos mesmos conteúdos, adequando à técnica e modos operacionais de cada mídia.

Para refletir sobre a perspectiva das audiovisualidades, a Prof. Suzana argumenta que é preciso compreender que esses conteúdos diferem apenas na forma ou grau de visualização dos mesmos conteúdos. Para isso, retoma a proposta de Henri Bergson (2006), onde assume que as coisas possuem sempre duas tendências, uma virtual da ordem do tempo, da memória e da duração da coisa, e outra atual, da realização numa forma, da ordem do espaço e da materialidade da coisa. Nos quais a coisa segue durando como potência ou devir.

“As durações no tempo diferem de natureza das outras, são coisas verdadeiramente diferentes. As atualizações diferem entre elas apenas em grau, não são outras coisas, mas apenas outras atualizações da mesma coisa. A tv que nos interessa aqui é que dura, que devém como mídia. Essa tv que dura já é uma atualização da televisão, uma virtualidade que transcende a televisão”. A televisão pode ser entendida como uma atualização da televisão, um dos modos de agir da televisão, quanto uma virtualidade ela mesma, um modo de ser de uma espécie de uma televisão que se atualiza e age atualizando-se em outras materialidades nas quais que continua, porém em devir como televisualidade.

“Televisão é uma televisualidade que transcende a mídia tv. Isso nos permite pensar em duração, um conceito mais largo sobre as imagens de tv que circulam hoje em diversas plataformas”.

Para o Prof. Gustavo Fischer, Presidente do GP e mediador do debate, a reflexão sobre a memória televisiva deve considerar o contexto tecnocultural, ou seja, determinados aspectos que caracterizam a sociedade em rede. Destaca a disputa dialética e tensional entre a ideia de abertura, compartilhamento, da construção colaborativa, do open source, do creative commons, e a noção de fechamento, de preocupação com a segurança, do impedimento de acesso à informação por meio de assinaturas de serviços e disputas de direito autoral. Além disso, entende que os ambientes online, por misturarem uma infraestrutura de banco de dados, o interesse da própria mídia em se manifestar na web por meio da disponibilização de materiais audiovisuais e a nossa presença em redes sociais, com uma postura de relacionamento, de imprimirmos nossa identidade, inserindo e compartilhando arquivos, enfim, um contexto de plataformização das relações, acabam por determinar a natureza da memória que está disponível na rede.

Assim, o material que está acessível é, mais do que programas, um conjunto de fragmentos que, por estarem inseridos nas plataformas de nosso tempo produzem interessantes circuitos temporais entre momentos da memória. Na visão de Fischer, “quando se (re)coleciona esses fragmentos, o que se coloca diante de nós é um conjunto entrecortado, mosaicado de captações, misturando sentidos de nostalgia e um acidental testemunho de modos e mundos televisivos. E que nos diz um pouco do que se pretende esconder e que ressurge por estes protagonistas improváveis, preservacionistas a seu modo, trazendo um paradoxal estado de lembrança e esquecimento que a meu ver caracteriza a memória nas e das mídias”.

Citando a noção de memória internacional popular cunhada por Renato Ortiz, a Profa. Miriam Rossini considera que a memória da televisão resiste enquanto fato cultural, mas, de outro ponto de vista, não resiste pela ausência de uma política pública voltada para a criação de um espaço de preservação do acervo da programação da televisão que permita o acesso a qualquer tempo, universal e gratuito, e não apenas quando disponibilizado aleatoriamente pelas próprias mídias ou como produto comercializável de natureza privada. Na visão da pesquisadora, esta lacuna segue a lógica da notória falta de interesse sobre os espaços de memória no País, como no caso do sucateamento dos museus, da falta de incentivo à Cinemateca Brasileira, por exemplo. Por isso, a criação de um acervo audiovisual como projeto público teria impacto positivo sobre o desenvolvimento informado de pesquisas da área de comunicação não apenas sobre a memória, mas sobre os estilos, as temáticas, os formatos, sobre a linguagem da televisão propriamente dita.

Além desta proposta, mencionou-se modelos e projetos que permitiriam o arquivamento da memória. Considerou-se que, embora o streaming possa facilitar uma série de questões e significar um avanço, ainda se mostra um modelo questionável, já que a seleção disponível é feita segundo escolhas editoriais baseadas na demanda e depende de assinatura. Apontou-se projetos de maior vulto como o Internet Archive que se propõe a ser um mediador de movimentos de coleção e preservação.

Neste ponto, Suzana Kilpp afirma que a memória da televisão é efêmera, parcial, e o que está disponível são restos do que em algum momento foi ao ar. E questiona se seria possível juntar todo este material, se haveria espaço para tanto e de que maneira organizar, disponibilizar e colocar os arquivos em uso. Pensa ser necessário atentar para as imagens da memória e não apenas para as memórias das imagens. Seria, portanto, uma usina de reciclagem de restos culturais, restos reciclados transformados e retransformados.

Em comentário final, o professor Francisco Machado Filho, vice-presidente do GP, chama a atenção para um fato novo trazido pela internet: a memória deixou de ser “propriedade” das emissoras, há uma perda de controle sobre o material acessível. Não estão mais disponíveis apenas programas como o Vídeo Show ou o Vale a Pena ver de Novo, da Globo, que apresentam uma programação da memória selecionada pela emissora com base em estudos de audiência. Estão disponíveis no youtube, por exemplo, até mesmo fragmentos de programação de televisão que talvez as emissoras não tivessem interesse em divulgar. Este é um fenômeno que passa a ter importante influência sobre os novos modelos de negócios das empresas televisivas e deve ser mais bem analisado em futuras discussões sobre a memória de televisão brasileira.

Para ouvir o episódio completo do podcast, acesse aqui!

Para saber mais sobre as pesquisas de memória das/nas mídias do Prof. Dr. Gustavo Fischer, acesse aqui o site!

Para conhecer a pesquisa sobre televisão da Prof. Dra. Suzana Kilpp, veja o site aqui!

Texto: Roberta Krause.

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