Minha Pesquisa no TCAv — Julia Souza

Em mais uma edição do “Minha Pesquisa no TCAv”, série que apresenta as pesquisas em andamento dos mestrandos e doutorandos da linha de pesquisa Mídias e Processos Audiovisuais, além de expor reflexões relativas a presença das audiovisualidades e da tecnocultura nos objetos empíricos da pesquisa, o trabalho dessa semana a ser discutido será o até então intitulado A intensialidade da memória em “No Intenso Agora”.

Antes de tudo, gostaria de me apresentar: me chamo Julia, sou da cidade de Rio Grande (RS), graduada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), e atualmente curso meu Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS na linha de pesquisa Mídias e Processos Audiovisuais, integrando o grupo de pesquisa TCAv. Meu interesse por documentários de natureza política e uso de imagens de arquivo no âmbito audiovisual teve sua trajetória iniciada no decorrer da minha graduação, onde no trabalho desenvolvido em minha monografia propus uma análise comparativa entre os documentários Videogramas de uma revolução (Andrei Ujic? e Harun Farocki, 1992), e Winter on fire: Ukraine’s fight for freedom (Evgeny Afineevsky 2015), onde observei as semelhanças presentes no processo de retratar cenários de revoluções a partir de imagens de dispositivos variados.

Fonte: montagem feita pela autora.

Com isso, ao ingressar no mestrado, minha pesquisa inicial era direcionada para uma abordagem que tangenciasse documentários contemporâneos com uma narrativa voltada para revoluções políticas e para a memória política que durava nas imagens desses filmes. Tendo como objetos de pesquisa os documentários Videogramas de uma revolução (1992), A praça Tahrir (2013, Jehane Noujaim) e No intenso agora (2017, João Moreira Salles), até então perseguia uma qualidade que denominava de recorrencialidade. À medida que percebi que haviam outras memórias que permaneciam nessas imagens, e compreendi a complexidade do aspecto da memória dentro do filme de João Moreira Salles, meu projeto sofreu uma transformação significativa, redirecionando a pesquisa para um único objeto — No intenso agora -, e concentrando sua atenção para uma qualidade agora denominada de intensialidade. Este processo gradativo se deu no decorrer das disciplinas cursadas no primeiro ano do mestrado, e nas diversas reuniões realizadas com o professor e meu orientador, Gustavo Fischer.

Assim, a intensialidade a qual norteia minha pesquisa surge a partir do próprio título do documentário, onde a intensidade a qual Salles se refere vem do acúmulo de memórias as quais o filme carrega. Sendo uma soma de alegrias, mortes, acontecimentos políticos, e histórias inseridos nos arquivos utilizados no filme, o passado está estreitamente inserido em No intenso agora (2017), sendo um tempo que dura e invade o presente, constantemente se atualizando. Desse modo, funcionando como um devir o qual produz uma imagem mental mobilizadora que provoca uma inquietação em mim por meio do documentário, a pesquisa formula um neologismo o qual denomino de “intensialidade”. A partir dela, investigo uma teia de camadas de memórias que são percebidas além do espaço da narrativa, formulando o questionamento que orienta meu processo investigativo: Como a intensialidade (virtual) se atualiza em No Intenso Agora (atual)?”

Fonte: capturas de tela a partir de cópia do filme.

Para compreender meu processo investigativo, explico primeiramente meu objeto: o documentário de 2017 é composto por um conjunto vasto de imagens de arquivo de materialidades distintas — recortes de jornais, imagens de televisão, filmes caseiros de terceiros e da família do diretor -, as quais transitam por uma série de acontecimentos políticos ocorridos na década de 1960, como a revolta estudantil de Paris, a Primavera de Praga Tchecoslováquia, e o regime de Mao Tse-tung na China — este último apresentado sob a perspectiva da mãe do diretor, Elisa Margarida Gonçalves Moreira Salles (1929–1988), a qual registrou imagens da China em uma viagem ao país em 1966. Me embasando nos conceitos de imagem-lembrança (BERGSON, 2010), imagem dialética (DIDI-HUBERMAN, 2010), e o aspecto de arquivo (DERRIDA, 2001) para debater os comportamentos executados nas e pelas camadas memoriais do documentário, o estudo proposto sobre as imagens de arquivo do filme amadurece a partir das dualidades que se desdobram a todo momento de forma sobreposta e tensionada na pesquisa: presente e passado, real e virtual, lembrança e percepção.

Tal qual uma parcela considerável das pesquisas desenvolvidas na linha de pesquisa de Mídias e Processos Audiovisuais, meu arranjo metodológico começou a ser organizado e compreendido a partir de uma flanêrie exercida nos arquivos que compõem o documentário. Foi a partir dela que a estrutura das camadas de memória presentes no filme se tornaram perceptíveis e estruturaram a análise a qual desenvolvi até o momento.

Fonte: Apresentação da banca de qualificação da autora.

Conforme Kilpp (2010) aponta o processo de dissecação vinculado a função de uma intervenção cirúrgica nos materiais plásticos e narrativos das audiovisualidades, em minha análise realizo tal intervenção em conjunto de um processo escavatório: trilhando um caminho de dentro para fora do filme, proponho o deslocamento de determinadas cenas de NIA com o propósito de realocá-las no fluxo da pesquisa, a qual se organiza a partir de três camadas: memória do realizador, memória da vida privada, e memória das mídias.

Em cada camada, exploro as plasticidades da imagem dentro do filme, partindo de um ponto descritivo do que está sendo retratado na cena, quais os personagens envolvidos na imagem, quais são os recursos narrativos acrescidos a elas, e assim por diante. Todas estas são especificidades que precisam ser reconhecidas e observadas para que a construção de um trabalho crítico da memória e de suas intensidades seja executada nas imagens dialéticas apresentadas no documentário. Ao utilizar a intensialidade como artifício de escavação dos frames, é possível perceber as marcas deixadas nos registros, à medida que foram desenterrados e realocados.

Na memória do realizador, a intensialidade percebida se manifesta especialmente na relação afetiva que o realizador possui com as imagens caseiras de sua mãe, bem como com a postura crítica que o realizador adota em relação as imagens de maio de 1968 na França. A imagem de sua memória age como uma virtualidade que se estende por toda a dimensão do filme, resultando na produção de uma nova memória de maio de 1968 e das imagens da China partindo de sua percepção individual.

Fonte: capturas de tela a partir de cópia do filme.

Já na memória da vida privada, a intensialidade vem em parte da valorização intrínseca nas materialidades de uma cultura de produção de filmes amadores antigos, em um período em que os registros de momentos do cotidiano eram rarefeitos. Cada imagem produzida em confraternizações ou com apelo denunciativo que surgem no documentário tem uma manifestação de intensialidade que a elas se atribui sob uma faceta diferente: mais do que a qualidade de serem imagens de natureza íntima as quais se comunicam com as memórias íntimas de quem as percebe, o arquivo amador possui a capacidade de acionar afetos e imagens-lembranças no espectador das imagens, onde desse afeto e da composição de acervos online como o Cinémémoire há uma possibilidade de reapropriação e ressignificação destes registros com base no meu olhar e vivência.

Fonte: capturas de tela a partir de cópia do filme.

Por fim, na memória das mídias, há uma distinção clara entre as imagens de natureza totalitária e imagens democráticas, onde a partir do mapeamento dos arquivos nos acervos online, foi percebida uma escassez de registros da Tchecoslováquia, enfatizando que a intensidade dos registros comunica sentidos em uma ausência na mesma proporção de quando se fazem presentes no quadro ou nos registros oficiais da história. Além disso, a intensialidade dos arquivos habita sobretudo na competência dialética e atemporal das imagens em estabelecer um diálogo contínuo com o presente, sendo sempre deslocadas de seu passado para produzir significados que se lançam no presente de quem as vê, e no futuro de quem as verá.

Fonte: capturas de tela a partir de cópia do filme.

No momento, minha pesquisa está se encaminhando para a reta final, levando em consideração todo o debate suscitado durante a banca de Qualificação, além dos novos direcionamentos definidos em conjunto com o professor Gustavo Fischer. No mais, compreendemos que o entendimento de intensialidade ainda possui espaço para ser discutido e reformulado, e em conjunto com os conceitos de tecnocultura e audiovisualidades, a pesquisa almeja tanto investigar quanto construir procedimentos anarquivantes que provocam sentidos outros nos arquivos do filme.


Texto: Julia Souza

REFERÊNCIAS:

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Duamará, 2001.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: 34, 2010.

KILPP, Suzana. A traição das imagens. Porto Alegre: Entremeios, 2010.

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