Estamos vivendo um momento que no mesmo instante é de contenção, também gera novos formatos de interação em decorrência de um fenômeno que está para além das mídias – a Covid-19. A primeira restrição imposta pelo vírus é a restrição do contato – nossos processos de troca, acessos aos circuitos, formações de grupos. Um cenário que se torna cada vez mais mediado por uma tecnologia de processos midiáticos. Estamos experienciando em tempo real, seja em uma instância de privação quanto uma instância de potencialização de experiências.
As telas tem nos feito companhia, a ponto de, por vezes, não conseguirmos nos desvencilhar das mesmas. Aula, trabalho, entretenimento, encontros, todos os âmbitos de nossas vidas habitam telas – ou são atravessados por elas. Um lugar atípico, onde estamos ressignificando, de algum modo, a ideia de proximidade e distância. Um flanar pelos espaços que nos são do cotidiano que se atualiza em um tempo estranho a todos nós.
Sobre as Passagens
Walter Benjamin, em sua obra Passagens, traz o flâneur enquanto uma figura que necessita refletir acerca de sua própria situação histórica, para que, assim, seja possível alcançar uma compreensão e uma tentativa em (re)definir o seu papel e a sua atuação social. Entre o século XIX e o início do século XX, o autor percorre as ruas de Paris em um cenário pós-Revolução Industrial. Seu modelo de existência é marcado tanto pelos meios de produção quanto pelas mudanças da percepção humana em função do avanço da técnica. Em outras palavras, “Benjamin apresenta o flâneur como aquele que ainda dispõe de fragmentos da verdadeira experiência histórica e, por reconhecer a distância que o afasta dessa experiência, ele representa a busca por uma consciência histórica atual” (Rosana Biondillo, 2014).
No interior dos grandes períodos históricos, transforma-se com a totalidade do modo de existência das coletividades humanas também o modo de sua percepção. O modo como a percepção humana se organiza – o medium no qual ocorre – não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente. (A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica – 2ª versão)
Pensar acerca do flâneur benjaminiano refletindo o momento em que nos encontramos no mundo hoje é, de certo modo, transitar em um limiar: de um cotidiano passado (que não será mais o mesmo) e simultaneamente participar da construção do presente. Estamos atravessando novas formações em função de um vírus, o qual passa a revelar uma crise da nossa experiência, dando lugar à vivência do choque. Entramos em choque.
O flâneur do isolamento
[…] Sair de casa como se viesse de longe; descobrir um mundo, que é aquele no qual se vive; começar o dia como se desembarcasse de Cingapura, como se jamais tivesse visto o capacho de sua própria porta nem o rosto dos vizinhos do mesmo andar..: eis o que revela a humanidade presente e ignorada. (Benjamin, W. O flâneur. IN: OE III).
Podemos dizer que o flâneur é uma espécie de viajante que não parte para o estrangeiro – ele vive a sua própria cidade. Porém, ao mesmo tempo, se faz enquanto um nativo com olhar de estrangeiro – confronta e desestabiliza o lugar acomodado e suas falsas aparências. É com esse movimento que vamos registrando e dando a ver não apenas uma leitura histórica cronológica por onde vagueamos. Temos um movimento anacrônico ao nos movermos por um solo que nunca é neutro, contendo vestígios em suas entranhas.
É preciso buscar alternativas para entendermos esse momento enquanto um espaço laboratorial imagético. A partir de um tablet, pensando sobre o ato fotográfico numa situação em que não podemos sair de casa, o fotógrafo Carlos Donaduzzi “percorreu†as ruas do Google Street View a partir das letras da palavra “isolamento†na barra de busca, letra por letra. O Google Street View é uma ferramenta que permite ao usuário visitar virtualmente cidade do mundo. Donaduzzi clicava no primeiro país/cidade revelado nos resultados da busca e, em seguida, na primeira imagem sugerida pelo software. A partir desses cliques é que o fotógrafo passou a “caminhar†virtualmente pelos lugares, capturando, assim cenas que o interessavam – flâneur. “Acabei andando, circulando e procurando pelas ruas. Se for pensar nessa lógica da fotografia de rua, desse caçador de imagens, não deixa de ser muito diferente” (Carlos Donaduzzi, para Folha).
Flanar pelas ruas, pela cidade vazia, pela tela. Por conta de todo um excesso de conteúdos e informações que tem nos atravessado neste cenário pandêmico, por vezes deixamos de olhar pela janela o nosso mundo ao redor, para ocupar outras tantas janelas que se apresentam na nossa frente. Isso não significa que não possamos encontrar formas de viajar e/ou explorar territórios, afinal, vivemos em um tempo onde a realidade nunca gerou tantas imagens como temos hoje.
Vivemos uma aproximação para além das distâncias geográficas, envolvendo relações temporais, onde Benjamin aponta que uma vez que se depende de imagens visualizadas, momentos passados irão surgir no momento presente, provocando um duplo rompimento: da linearidade visual e temporal. Ou seja, vivemos a história a contrapelo, num anacronismo, especialmente ao pensarmos na temporalidades dessas imagens.
O projeto intitulado “ISOLAMENTO“, de Carlos Donaduzzi, gerou uma série de dez fotografias realizadas a distância, ao longo de três dias por intermédio de um tablet. Em sua fala na matéria da Folha, Donaduzzi compara as reproduções que fez das telas com a tradição de fotografia de rua, na qual um fotógrafo flana por uma cidade em busca de imagens – ou do “instante decisivo” tão difundido pelo fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson.
É importante atentarmos para o seguinte: não estamos falando de imagens que se referem ao mundo durante a pandemia, mas sim pelo ato de fotografar, bem como o ato de flanar, sem poder sair de casa, sem poder explorar os becos e ruelas – somos portadores de um olhar estrangeiro percorrendo janelas dentro de uma tela. No caso do projeto de Donaduzzi, não tem como saber com exatidão quando a Google tornou tais imagens online.
É bem isso, de habitar e ocupar espaços através das telas. Eu pensei sobre como o ato fotográfico levando em consideração um isolamento que realmente não permite sair de casa pode ser alterado. Um fotografar a partir de imagens pré prontas, o que o mundo desse momento oferece. (Carlos Donaduzzi).
Ora, estamos atravessando um fenômeno histórico, mediados por uma tecnologia de processos midiáticos, onde é fundamental que se compreenda o lugar onde nos situamos e nos vemos, bem como interpelamos o outro. Ocupando telas, buscamos nossa ambiência de origem, a qual não se realiza neste feito: estamos privados do contato, uma mobilidade contida.
Para Benjamin, o flâneur é aquele que dispõe de “fragmentos da verdadeira experiência histórica e, por reconhecer a distância que o afasta dessa experiência, ele representa a busca por uma consciência histórica atual” (Rosana Biondillo, 2014). Sendo assim, podemos dizer que estamos imersos em uma instância que potencializa experienciarmos uma nova figura do flâneur – uma forma de atualização.
Texto: Camila de Ávila.
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