No dia 04 de março de 2022, às 20h foi lançado o Curta-Metragem do egresso Julherme Pires. Intitulado “É assim que eu me lembro”, a peça audiovisual está disponível no YouTube e acompanha o fechamento deste texto. O Filme aborda imagens ressuscitadas de um disco rígido esquecido por sete anos, as imagens montadas neste filme manifestam um olhar sobre paisagens da memória e do afeto por meio da técnica, através de uma viagem pelos arquivos de um intercambista no Vietnã.
Na conversa, que ocorreu de forma remota pela plataforma Google Meet no dia 13 de abril. O Egresso falou sobre a construção do Curta-Metragem, da importância da Memória e de como as discussões que o grupo TCAv aborda atravessam seu filme. Julherme Pires é Doutor e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, na linha de pesquisa Mídias e Processos Audiovisuais, bacharel em Jornalismo e especialista em Cinema e Realização Audiovisual pela Unochapecó. Além disso, é membro do Grupo de Pesquisa Audiovisualidades e Tecnocultura: Comunicação, Memória e Design (TCAv)
Confira abaixo trechos recuperados da entrevista.
TCAv: Para começar, gostaríamos de saber de você como é a relação de um egresso do PPG em produzir um Curta-Metragem que dialoga com a temática da memória, que é tão importante para as pesquisas do TCAv?
Julherme: Eu acho que o conceito de memória e o conceito de arquivo que também está articulado atravessam muito as nossas pesquisas e acho que a nossa relação com essas materialidades que dizem respeito a outros tempos aparecem com força no momento de criação. Porque, enquanto pesquisadores, nós buscamos as durações abaixo e acima de nos objetos e no momento da formulação, no momento em que você está manipulando esses tempos, foi isso que eu achei interessante de pegar imagens do passado, imagens que não estavam úteis, que não eram úteis e que estavam lá no meu HD externo esperando para serem redescobertas.
T: Você traz uma citação de Bergson já no começo do Filme, queríamos saber de ti quanto a produção audiovisual se contagiou com o tema da memória, com o tempo, com as imagens, com a vida, com Bergson etc.?
J: Então, tudo né? Depois que eu passei a estudar na Linha 1, eu me transformei não só um pesquisador da linha 1, mas um artista da linha 1. Porque esses estudos são muito presentes no nosso Imaginário, não é uma coisa dissociada. Muito pelo contrário, acho que de certa forma eu fui formado enquanto artista nessa perspectiva. Tudo que eu faço a partir de agora tem a ver com isso.
Essa menção ao Bergson revela isso logo de cara. Eu faço essa menção porque eu considero um trecho muito importante do livro em que ele mostra essa condição que a gente tem, do olhar. Por isso inclusive essa posição no EU, é assim que EU me lembro. Outras pessoas, outros corpos vão se lembrar diferente.
Ao mesmo tempo essas materialidades condicionam as minhas memórias. Muitas vezes eu não me lembro das cenas em si, mas eu lembro das imagens. Então as imagens reformulam a própria memória. Elas enquadram a memória da gente, enquadram as nossas lembranças. Todas essas reflexões são Bergsonianas, são Deleuzeanas, são Benjaminianas. Não tem como dizer que eu não fiz parte de uma escola que pensa comunicação e arte, não é mesmo? A gente pensa em temporalidades, em materialidades, então é muito na criação, na formulação das suas materialidades, as teorias e esses modos de ver. Esses objetos que eu encarei na tese fazem parte sim da constituição dos objetos que eu produzo, que eu crio.
Eu acho isso excelente, porque é um grande diferencial da linha 1. De pensar a natureza dos objetos em geral. É algo que a gente vê em PPGs que estudam cinema, por exemplo. A abordagem costuma ser estudando o conteúdo do filme, os atravessamentos sociais e antropológicos. Nós lidamos com isso também, mas a gente vai para a tecnoestética, para as formas, para o desenvolvimento das tecnologias e a relação com a cultura e a memória. É uma pegada da filosofia na comunicação. Isso que eu acho fantástico para o artista. Para quem cria é outro mundo.
Eu fui foi muito a fundo no Bergson e pensei muito a respeito disso. Tem muito parte da Suzana nisso como orientadora. Ela que eu acho ser a pessoa responsável por amarrar a genealogia teórica que a linha 1 trabalha até hoje. Ela sempre colocou questões muito de base, de essência dessas teorias, que agora eu vejo mais do que nunca que tem total a ver com os objetos que nós criamos ou analisamos.
E tem uma outra questão que é pensando os objetos Brasileiros. Eu estudei essa coisa da tecnotropicalidade. Nesse filme aparece um pouco. Ele é um filme brasileiro, ele é um filme de um artista brasileiro que vai pensando essa coisa do arquivo. Para denotar essa importância de olhar, dos arquivos para as lembranças, eu trouxe especialmente pela questão sonora. O ambiente computacional que eu utilizei para editar. No início do filme como se estivesse ligando o computador e no final ele está desligando o computador como no momento de edição.
T: Como surgiu a vontade de produzir esse Filme? Como foi o processo de ressuscitar as imagens do Disco Rígido e quais as relações que ele trava com a sua Tese? No seu trabalho você fala em filme-arquivo, e no seu Curta?
J: Esse filme foi gravado entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015. A minha matrícula no mestrado da Unisinos aconteceu lá no Vietnã, eu estava lá quando eu descobri que tinha passado. Recebi a notícia e tive que fazer a matrícula de lá. Foi até todo um esforço para imprimir os documentos lá no xerox de Ho Chi Minh.
Eu fiz essas imagens lá no Vietnã, voltei para o Brasil e me mudei para São Leopoldo. Então, meu HD externo veio junto, e pelo fato de a voltagem ser 110v, eu nunca consegui ligar o HD. Aí eu mudei para Porto Alegre, passei mais três anos e também não consegui ligar o disco.
No total foram seis anos sem ligar esse HD externo e aí as imagens ficaram lá. Eu me mudei para Chapecó depois do Doutorado e apareceu esse edital lá da Prefeitura, da Lei Aldir Blanc e aí eu pensei: “Pô, quem sabe eu possa rever essas materialidades?” E aí surge a história do título do Curta: “É assim que eu me lembro”. Ele tem vários sentidos, mas dois mais importantes. O primeiro é que é algo que eu afirmo para as pessoas que assistem: É assim que eu me lembro. Essa montagem, é dessa forma que eu me lembro dessa viagem, dessa experiência no Vietnã e ao mesmo tempo é uma coisa que eu digo para mim mesmo. Quando eu pego essas imagens e as remoto. É a partir dessa remontagem que eu me lembro da minha própria experiência lá no Vietnã.
Quanto ao Filme-Arquivo, com certeza. Inclusive essa semana eu estava relendo o conceito de arquivo. E pra mim, quando a gente chama algo de arquivo é um movimento epistêmico de olhar para um objeto e entender que ali tem outros tempos. Que tipo de tempos organizam esse arquivo? E claramente este é um filme de arquivo. Além de um filme-arquivo, ele é um filme de arquivo. Porque está na natureza dele trabalhar esses tempos. Por mais que seja um tempo específico, entre 2014/2015, tem esse olhar do presente que eu relanço e que seleciona as imagens que dão a ver esses tempos. Eu me preocupei muito em selecionar imagens que trouxessem as várias profundidades dessa experiência que eu tive.
T: No começo do filme você comenta brevemente sobre como estava sendo o processo de gravação, sobre a cadência das imagens. Essa cadência é inspirada nas suas memórias da viagem, como em uma espécie de fotografia da sua memória ou você usou técnicas de montagem audiovisual mais “tradicionais”, no sentido de manter a atenção do espectador?
J: Sim, eu estava interessado em manter o espectador. Porque é uma coleção de imagens e é uma coleção linear. Ela não é uma coleção que volta. Tem cenas de momentos que eram futuros, que não estão exatamente na sequência dos acontecimentos, mas eu estou preocupado em construir uma certa linearidade e não ficar voltando.
Eu até pensei em fazer algumas coisas nesse sentido no momento da montagem. Mas o principal intuito da montagem é fazer justamente isso do fluxo da memória. Então “É assim que eu me lembro”. Quando eu estou me lembrando daqueles momentos, tem cenas que eu paro para pensar a respeito e tem outras que não, que passam rápido, que eu me lembro como flashes. E aí eu tento dar um ritmo até meio musical para as imagens. É uma coisa que tem essa cadência. Ela vai para frente, ela acelera, ela reduz.
Uma preocupação que eu tinha era sobre esses momentos que são muito fragmentados, por exemplo. Se você cuidar, isso é uma questão de detalhes, mas tem uma cena longa e aí a cena na sequência é mais curta, a sequência um pouco menor e vai diminuindo o tempo até chegar em um frame preto. E aí quando voltam as imagens, voltam curtas e vai aumentando o tempo da cena. Vai acelerando e acelerando.
Esse frame preto também remonta os momentos em que eu paro para pensar, paro para refletir. Eu me inspirei muito no filme Climax de Gaspar Noé. Ele deixa um preto um pouco maior, eu gostaria de deixar um pouco maior, mas aí o filme ia ficar muito longo, eu queria deixá-lo como um “curtinha” mesmo e ele acabou fechando em 16 minutos. Eu queria até fechar em 15 minutos, mas aí depois chegou em 16, eu não consegui cortar mais nada.
T: Ainda sobre a memória, no final do Filme temos uma entrevista que fala sobre a preservação da memória do Vietnã, e ao ver as belas imagens do Vietnã que você apresenta, temos uma percepção diferente das produções audiovisuais estadunidenses. Isso foi algo proposital?
J: Eu fui para o Vietnã em um projeto chamado Vietnã 3D. Que é um projeto de uma ONG internacional chamada AIESEC. O objetivo dessa ONG é realizar intercâmbios sociais e profissionais para o mundo todo. O intuito do projeto Vietnã 3D era justamente desmistificar a imagem que se tem do Vietnã. Eu era da comunicação, do audiovisual, e passei no processo seletivo para esse projeto.
Foram 15 intercambistas de vários países do mundo, da Itália da Malásia, Nova Zelândia, Austrália, China, uma série de países. Inclusive outros brasileiros, o Johann com quem eu converso no início, era um brasileiro de Santa Catarina também. Nós fomos para documentar o Vietnã contemporâneo, longe do Vietnã da guerra.
O Vietnã é um país que preserva muito a sua memória. Uma das primeiras imagens do curta é do museu “War Remnants Museum” e a memória está por todo lugar no Vietnã. Em todo lugar tem a memória da Guerra, também tem essa perspectiva do Herói Vietnamita e do povo Vietnamita. A figura do Ho Chi Minh aparece muito e como uma espécie de “Big Brother” do Vietnã.
Então a ideia das imagens iniciais era justamente isso: Desconstruir essa perspectiva. Mas eu não precisei fazer esforço. O Vietnã é um país como qualquer outro, né? É um país “de terceiro mundo” como o Brasil. Eu mostrei o que eu vi, essencialmente. Não teve intensões de esconder lados do Vietnã.
E ainda teria muita coisa para mostrar sabe? Eu vi muito mais, eu gravei muito mais, mas eu dei ênfase para uma paisagem da memória mais íntima. O que mais me afetou lá não foi o Vietnã em si, mas as pessoas que eu conheci lá, Vietnamitas ou de outros países, essas relações e vivências que eu retratei no filme.
T: Gostaríamos de fazer uma pergunta relacionada ao som. Como você vê a importância do som na memória? No Curta a gente ouve muitos ruídos brancos, o vento, o mar, vozes distantes, motores etc. Para você, qual seria o som da memória?
J: Veja, não tem nenhuma adição a não ser essa sonoridade computacional, as trilhas que estão presentes, são trilhas que foram gravadas lá, em loco. Inclusive quando eu perco o som em algumas cenas, eu esqueço de ligar o microfone e aí fica sem som. Isso tem um certo Impacto estético. Eu não nego que em alguns momentos eu escolhi e deferi a entrada de algumas cenas por uma certa paisagem emotiva que tinha.
Mas também escolhi deixar alguns trechos que podem até incomodar de ruídos como o vento “estragando”, por exemplo. Isso é o arquivo, né? Isso não é a minha lembrança. Na minha lembrança, não tem vento batendo no microfone, o vento que a gente ouve é diferente. Agora, nós estamos lidando com os arquivos. Este é um filme. Isso não é uma lembrança, isso é um filme de lembrança. E a montagem sonora acompanhou a montagem das imagens.
Para mim era muito importante ter diálogos fragmentados. A beleza da fala vietnamita é uma coisa excepcional. Uma das minhas cenas favoritas é quando a gente vai naquela modelagem de argila e aí tem um cara explicando. O modo como ele fala, eu até escolhi não colocar legenda nas falas vietnamitas. As falas vietnamitas estão puras porque eu nunca entendi o que foi falado, eu sempre pegava pela tradução em inglês.
T: Passando para perguntas mais técnicas. Qual equipamento você usou? Era só uma câmera com o microfone embutido? Essa câmera estava presa ao teu rosto como uma GoPro? Como as pessoas reagiam com tu estar com a câmera?
J: O filme é um filme de vídeo, é um filme gravado com uma câmera DSLR, uma Canon T3i, que é uma semiprofissional de baixa qualidade. E o filme foi editado em um PC. Eu queria trazer um pouco dessa coisa do PC de mesa, do disco rígido sofrendo para renderizar o vídeo. Então o som de base é um som de computador, é do Disco Rígido, da fonte, do cooler. O microfone que eu utilizava era um pequeno boom que você acopla em cima da câmera, ele estava sempre conectado.
E a questão da altura da câmera, a lógica variou bastante porque todo mundo ali sabia que eu estava documentando para o projeto. Então não tinha nenhum tipo de peso. Nós estávamos fazendo o que era parte do projeto e todas as pessoas que eu mostrei tinham noção que estavam participando. Exceto, as pessoas que estavam lá no templo fazendo as rezas. Isso foi só uma parte mais antropológica do filme, digamos assim. Essas pessoas estavam lá, vivendo e fazendo os rituais delas.
Não havia um tipo padrão de filmagem, eu não usei nenhum momento tripé, era sempre câmera na mão. Tem alguns momentos em que a imagem está bem parada, mas é porque eu encosto em algum lugar, no colo, em uma pedra, um muro. Mas em geral foi câmera na mão para o momento em que eu via alguma coisa interessante, eu já ligava a câmera, apontava e começava a gravar.
T: Você filmou constantemente ou elegeu alguns momentos específicos? Tinha um momento para começar e terminar a gravação? Você foi salvando em algum outro lugar essas imagens? Chegaste a ficar sem memória?
J: Eu comecei a gravar as primeiras cenas lá do aeroporto, ainda em São Paulo. O que eu falo para o Johann no início do filme é justamente isso. Eu vou ir filmando e eventualmente vou fazer um filme com isso por fora do projeto. Então comecei a gravar, mas eu não sou muito de pegar e ficar gravando tudo.
Como eu já trabalhava em TV, já tinha feito filme, eu sabia que não ia conseguir dar conta de ficar filmando o tempo inteiro. Eu me preocupava já em fazer cenas mais prontinhas, mais próximas de uma possibilidade de corte. Então por isso que eu já pensava em cenas paradas, em cenas mais bem posicionados, eu olhava bem para o cenário e gravava só o tempo que eu mais ou menos eu achava que ia ficar.
Tem uma cena por exemplo lá na praia que as pessoas sempre falam que é uma cena muito bonita de uma guria que aparece quase que só a silhueta dela e no fundo do mar. Foi uma cena que eu fiquei, eu acho, uns dois minutos gravando. Ela estava tão bonita naquele momento eu estava me sentindo tão bem gravando aquela cena que eu resolvi parar e gravar. Mas é uma exceção.
Aí a gente começou a viajar. O projeto era bem complexo, envolvia pessoas da Universidade da Foreign Trade University que faziam os tours para nós. E aí a gente ia para lugares no interior do Vietnã. Aí sim, eu comecei a documentar, a gravar pensando no projeto. Tanto que muitas dessas imagens que estão no filme elas estão também nesses documentos que foram colocados para divulgar esse Vietnã contemporâneo.
A gente criou uma marca, tem um canal no YouTube com essas cenas. Mas era muito isso, eu escolhia momentos específicos e já pensando em como montar. A minha principal função por muito tempo foi edição, eu tenho mais domínio da edição do que do próprio manuseio de uma câmera, então eu já tinha essa experiência, essa cabeça de editor.
Eu não tinha levado HD externo, mas eu tinha um notebook e aí não foi uma coisa que aconteceu de eu ficar sem memória. Eu tinha um cartão de bastante espaço e nunca faltou. Mas por isso, por um planejamento prévio, de eu não sair gravando tudo. Tinha consciência de quanto tempo eu tinha para gravar e não perdi nada por causa de arquivo e de falta de memória.
Por fim, Julherme agradeceu o convite e disse achar muito interessante falar com o TCAv sobre o filme. Segundo ele, o Curta-Metragem continua se atualizando nessas conversas, nessas outras existências. O Filme, “É assim que eu me lembro” está disponível na íntegra abaixo. Bom Filme!
Texto: Gabriel Palma
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