Déjà vu nos processos midiáticos

Questões como ruído, mídia e memória serão abordados na abertura da 16a. Semana da Imagem na Comunicação.  Peter Krapp, pesquisador americano e professor de Estudos de Cinema e Mídia na Universidade da Califórnia em Irvine, estará na Unisinos e abrirá os trabalhos da Semana com o tema Glitch e o erro digital.  Nos aproximando dos assuntos que serão abordados, compartilhamos a seguir trechos traduzidos de entrevista com Peter Krapp, publicada originalmente no volume 17 do periódico Antithesis (2006), concedida aos editores da revista, sob o título de ‘A forgetting that fails to forget itself’. Disponível integralmente neste link.

Tradução: Eduardo Harry Luersen

Em seu livro Déjà Vu: Aberrations of Cultural memory (2004), Peter Krapp realiza uma aproximação entre mídia e memória, produzindo uma teoria que provoca o leitor a olhar com maior atenção para os temas do esquecimento e da lembrança, em sua relação com a memória cultural. Transitando entre media studies, literatura comparada e a filosofia da história, o pesquisador se debruça sobre as formas de agir do passado nas tecnologias do presente. No trabalho de Krapp, a noção de déjà vu proporciona uma perspectiva crítica para pensar a interface entre os processos midiáticos e a rememoração e, por conseguinte, as imbricações éticas, estéticas e políticas em jogo nas expressões individuais e coletivas da memória nas mídias contemporâneas.

Antithesis: Em seu livro, ao levantar o problema da memória e da voluntariedade, você utiliza a noção de déjà vu para fazer uma distinção entre a memória individual e a memória coletiva. Como a noção de déjà vu lhe permite teorizar a diferença entre estes processos da memória, e qual é a importância da amalgamação e da separação entre eles na cultura contemporânea?

Artista: Adam Ferriss.

Peter Krapp: Conforme Halbwachs, a memória coletiva é a construção partilhada, no presente, daquilo que é chamado (mas nem sempre experimentado individualmente de tal forma) de passado. Nesta perspectiva, o passado se torna independente da falibilidade da lembrança individual; deste modo, Halbwachs sustenta que as frestas na memória pessoal de um indivíduo são preenchidas pelas memórias de outras pessoas. Contudo, isto também significa que a memória coletiva, que supostamente nos protegeria do esquecimento, se trata na verdade de uma forma de paramnésia. O construto da memória coletiva exclui qualquer consideração da necessidade e da importância do esquecimento. Além disso, deve-se observar que a experiência do déjà vu nunca é coletiva: nem pode ser produzida ou repetida voluntariamente. A minha contribuição ao que se chama de memória coletiva ou cultural talvez possa ser sintetizada por duas observações conceituais: que, enquanto um construto, ela necessariamente repele qualquer esquecimento em potencial; e que, ao fazê-lo, ela pode efetivamente introduzir falsas lembranças baseadas em seu uso social corrente. Isto fica evidente pela popularidade de lendas urbanas e teorias da conspiração, especialmente online, onde muitos “lembram” que havia armas de destruição em massa no Iraque, que a internet foi inventada para servir como uma estrutura de comando pós-nuclear, e que Hitler sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e fugiu para a América do Sul ou para a Antártida – mesmo que tais proposições sejam demonstravelmente sem sentido. Especialmente sob as condições da chamada economia da atenção, precisamos ter cuidado com o modo como as nações, os partidos, as corporações e a imprensa empacotam as lembranças culturais.

Antithesis: A distinção em termos de ética que você faz, entre formas individuais e coletivas de memória, levanta o problema da voluntariedade na produção cultural. Como isto comparece em seu livro, na medida em que você analisa uma variedade de formas culturais e midiáticas, incluindo literatura, poesia, teatro, artes visuais e cinema?

Peter Krapp: Partindo da ideia de que nossa produção cultural parece basear-se na continuidade, na tradição, na memória coletiva, é fácil negligenciarmos o fato de que estes artefatos e expressões nunca vêm a ser completamente desenvolvidos. Eles se tratam de vestígios de complicados e controversos processos, que convivem desde o seu princípio com acidentes, lapsos e anomalias. Quer alguém olhe para a invenção mítica da escrita, para a lenda poética de como as mnemotécnicas foram inventadas, ou para qualquer outro mito fundador difundido em uma dada situação social ou cultural, deve ficar bem claro que a base para a compreensão do seu sentido não é apenas a retrospecção ou a conjuntura. Estes rastros requerem algum esforço de decodificação, leitura e entendimento; a cultura não só está sempre em um estado de vir-a-ser, como também é sempre parte de algum evento imprevisível que demanda atenção, respostas, ações e gestos. As minhas referências a Agamben, Metz, Freud, Benjamin ou Derrida, nos vários textos e contextos que aproximo em meu livro, apontam que a leitura é escritura, que a recepção de um sentido é a produção de um sentido, e vice-versa – um não pode ser isolado do outro.

Antithesis: Em seu livro você sugere que, pela interação, a internet pode ser usada para causar rupturas na memória coletiva – para sair do loop de uma memória que destrói qualquer experiência positiva de esquecimento. De que forma a sua leitura sobre a internet difere da sua leitura sobre o arquivo? E que oportunidades emergem através da tecnologia e da internet para que práticas alternativas, como aquela que você chama de “esquecimento voluntário”, se desenvolvam?

Peter Krapp: Eu oferto anualmente uma disciplina sobre os primórdios da internet e o seu remix estendido, que tornou-se o pivô da produção cultural contemporânea. A internet não se trata de uma nota de rodapé generalizada (hipertexto), de um arquivo onisciente, de um repositório Hegeliano do espírito do mundo, da emanação de uma alma coletiva, de um big brother totalitário, ou de uma máquina gigante de esquecer… Desde os Processadores de Mensagens de Interface (IMP) até a Web 2.0, da Web art ao YouTube, do Tennis for Two e do Space War aos jogos descartáveis em Flash, do HTML ao CSS, ou o que for, o que a Internet permite é o envio de experiências coletivas e individuais em lote para circuitos de interpretação e lembrança. Atualmente, há diversas tentativas fascinantes de arquivar a história recente da Internet e da Web. A partir destas experiências, revela-se a importância de abandonarmos a expectativa de qualquer arquivo enquanto uma força regulatória ou corretiva amparada pela completude ou pela plenitude. Ao invés disso, o que percebemos é que um arquivo confiável deve reproduzir precisamente as tensões e cisões interpretativas que aderem a qualquer questão ou tema. Meu maior problema com o paradigma atual sobre o conteúdo gerado pelo usuário e as redes sociais é que eles não conseguem discernir para muito além de gostos por popularidade (mais visualizado, melhor rankeado, mais linkado, mais comentado). Pela mesma moeda, aquilo que não estiver citado e em circulação estará condenado a uma forma especial de esquecimento. Por um lado, esta seleção é análoga à noção Nietzscheana de apagamento; por outro, ela pode levar à obsolescência artificial da informação, da opinião e da arte, ainda que isto possa vir a ser conveniente e importante se considerarmos um prazo mais amplo. De qualquer forma, isto é provavelmente melhor do que o auto-canibalismo proporcionado pelas intermináveis reprises noturnas da televisão. No online, o controle de versões segue sendo um problema mais importante do que os direitos de reprodução.

Lembramos que A 16a. Semana da Imagem na Comunicação acontece entre os dias 14 e 17 de maio, das 20 às 22h, no Auditório Bruno Hammes e tem como tema central o tema Design, Imagem e Tecnocultura. O evento é gratuito.

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