O filósofo Bergson propunha em sua filosofia que tudo que existe continua existindo (durando) porque se atualiza diante da sua necessidade de sobreviver. Este princípio é basilar para a formulação das audiovisualidades, pesquisadas no âmbito do TCAv, nos inspirando pensar essa duração, isto que existe, e que se atualiza em diferentes formas.
Neste ano, diante da pandemia, do isolamento social, da quarentena e do lockdown, muitas durações precisaram se atualizar, se reformular. Vivenciamos uma reação em cadeia de invenções de formas de viver em isolamento. Tão rápido quanto a forma abrupta que tais condições se impuseram em nossas vidas, foi a adaptação das produções imagéticas, sonoras e audiovisuais. O isolamento social foi rapidamente inventado e atualizado nas audiovisualidades.
Em pouco tempo cadeias e indústrias diversas de produção responderam com as mais diversas formas de entretenimento – dos festivais de cinema adaptados, como o que já mencionamos aqui no site, Fantaspoa At Home, aos vídeos rápidos do TikTok, um avalanche de identificação de experiências de isolamento foi transposta para as imagens técnicas. Hoje propomos olhar para duas produções, distintas entre si, mas que dizem sobre a invenção e atualização diante da necessidade de existir – de nós e das audiovisualidades: a série Homemade (Netflix, 2020) e a série Stories In Place (Vimeo, 2020).
Homemade ou Feito em Casa (tradução brasileira) é uma produção realizada por cineastas de diferentes países do mundo durante o período de isolamento social; distribuída pela Netflix, a série antológica, que aborda diversas perspectivas quanto a quarentena decorrente da pandemia da Covid-19, contém 17 episódios com duração entre 04 e 11 minutos. Os curtas-metragens apresentam desde relatos íntimos das complexidades vivenciadas durante a proliferação do vírus até histórias fictícias e bem-humoradas protagonizadas por bonecos. Apesar de grande parte dos realizadores utilizar aparelhos celulares para a captação de imagens e sons, as técnicas de gravação e os recursos empregados diversificam-se muito incluindo, inclusive, o uso de drones.
Uso de drone no curta de Ladj Ly. Fonte: Netflix
A série autoriza, pelo enunciado do título, uma estética caseira, com granulações e pixelizações, histórias pessoais, narrações ensaísticas e imagens captadas por smartphones. Aceita-se, convive-se e identifica-se, nas imagens da série, afinidades e aproximações com alguns cotidianos em isolamento. A imagem técnica é marcada por essas mídias de uso pessoal, inventando formas de se relacionar com o mundo também através delas.
Episódios como o dirigido por Pablo Larraín, em que um idoso residente em uma casa de repouso faz uma chamada de vídeo para uma ex-namorada, ou o de Rungano Nyoni, o qual exibe um casal em crise convivendo em um pequeno apartamento durante o isolamento social, exibem a presença das mídias em situações inusitadas.
Além do destaque para as tecnologias, Homemade aborda questões como a solidão (episódio do alemão Sebastian Schipper), a insônia e a confusão mental (dirigido por Kristen Stewart) decorrentes da quarentena.
Videochamada no episódio de Pablo Larraín. Fonte: Netflix
No episódio dirigido por Gurinder Chadha, a memória possui um aspecto relevante para a narrativa; no curta da diretora de origem indiana, as recordações influenciam nos aprendizados religiosos, na perda de parentes próximos e em como isso tem afetado a relação com os filhos durante a pandemia.
Ao longo do filme de Chadha, algumas materialidades relacionam-se com essas memórias da diretora e da família de maneira bastante direta. Esse é o caso das fotografias antigas, que trazem para este território a urgência dos estímulos da lembrança, ou melhor, de acordo com outro conceito bergsoniano, da imagem-lembrança “no lugar†dos acontecimentos sociais imediatos.
Com as restrições em relação às aglomerações, as produções audiovisuais têm enfrentado inúmeros desafios para efetivar a gravação de novas produções, bem como exibi-las, visto que as salas de cinema permanecem fechadas. Entretanto, as plataformas de streaming têm se mostrado uma alternativa interessante à adaptação do setor audiovisual e o lançamento Homemade da Netflix lança-se como uma tendência para futuras experimentações das audiovisualidades.
Já Stories In Place seleciona e exibe a história de oito pequenos negócios se adaptando à realidade do isolamento social para continuar existindo, mantendo o trabalho ativo. Professora de dança, cabeleireiro, mergulhador, tatuadora e outras profissões, que exigem a proximidade de pessoas, se adaptam à essa nova realidade em gravações realizadas inteiramente à distância.
Ao passo que exibe pequenos negócios se adaptando rapidamente, a própria produção da série também oculta em si a adaptação do mercado audiovisual e a sua capacidade de realizar. Com uma formulação voltada para o estímulo dos negócios, em detrimento do caseiro, familiar, pessoal e íntimo presente em Homemade, esta série da plataforma Vimeo exibe também a capacidade deste outro tipo de audiovisual, menos interessado nas estéticas caseiras, mas interessado nas formas de inventar o trabalho.
Consideramos importante aqui lembrar que o Vimeo se constrói como uma plataforma ideal para profissionais audiovisuais publicarem suas criações. Estes, mesmo “ocultos” na imagem da série, podem ser reconhecidos inscritos nesta imagem – uma vez que ela está dentro da plataforma – e podem eles mesmos reconhecer a possibilidade de continuar produzindo imagens, estéticas e narrativas potentes (para, diga-se de passagem, seus clientes de pequenos e médios negócios).
Ambas as séries trazem invenções de isolamentos e distanciamentos sociais diversos em imagens técnicas do audiovisual. Insistimos nas imagens técnicas também porque entendemos que elas não cobrem a totalidade de realidades de isolamentos, mas se restringem somente àquelas inventadas em imagens.
Texto: Amerian Aurich e Juliana Koetz
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