Para dar continuidade à série Audiovisualidades na Pandemia, o texto de hoje busca fazer conexões com um dos temas centrais para as pesquisas do grupo TCAv, a Tecnocultura e a comunicação. A partir do isolamento social no Brasil provocado pela pandemia da COVID-19, vimos como possibilidade de discutir neste espaço diversos conceitos a partir das audiovisualidades e como enxergamos algumas manifestações a partir de autores e teorias que norteiam as nossas discussões no grupo de pesquisa.
De fato, pautas não faltam, já falamos aqui sobre “Filmes de pé e a tecnocultura na pandemia“, “Esportes, e-sports, televisão e videogame“, “Arte e espaço em tempos de pandemia“, “O fim do cinema“, “A intimidade doméstica e a pandemia imagética” e também sobre o papel do jornalismo e das telas em “Mídias e a Pandemia“. E como parte da população está realizando suas atividades profissionais na modalidade home office, o número de acesso a conteúdo de informação e entretenimento na internet durante a pandemia cresceu demais no mundo todo. Especificamente aqui no Brasil, o volume subiu entre 40% e 50% segundo dados da Anatel[1].
A desigualdade
Essa modalidade à distância, que nos forçou a estar conectados ainda mais via internet e a digitalização urgente de diversos serviços (alimentação, vestuário, suprimentos e educação, por exemplo), acabou expondo a disparidade social existente no nosso país. Ao saber que 49% da população não têm acesso à internet, não podemos fechar os olhos e acreditar que o “novo normal†para a nossa sociedade vê na digitalização a grande solução. Principalmente durante a pandemia, as redes sociais têm sido palco de muitas discussões e alertas importantes sobre desigualdade e representatividade, e de certa forma, demonstram como as plataformas sociais ilustram a alienação política e social de parte da população.
Nesse sentido, diversas iniciativas vêm levantando a bandeira sobre a necessidade de discussão sobre esse tema, como a Stop Hate for Profit, que de acordo com seu site “deseja que o Facebook tome medidas de bom senso para lidar com o desenfreado racismo, desinformação e ódio em sua plataforma[1]“. Pelo ponto de vista da comunicação e do mercado publicitário, vale lembrar que aproximadamente 80% do investimento em mídia digital no Brasil está alocado nas mãos de grandes grupos como Facebook e Google, e portanto, por conta desse movimento, diversas marcas anunciantes optaram por se manifestar a respeito da reivindicação por uma melhoria no algoritmo do Facebook para evitar que sua plataforma continue sendo um ambiente de disseminação do discurso de ódio e racismo, por exemplo, retirando seu investimento publicitário da rede social. O chamado “boicote ao Facebook” foi tema de muitas discussões na mídia e manifestações de usuários exigindo uma solução da rede social para que fossem adotadas regras mais rígidas contra discursos de nacionalismo branco, mas preconizando a garantia dos direitos civis. O movimento #StopHateForProfit abriu os olhos de grandes marcas que não queriam estar associadas a uma plataforma de mídia que corrobora com o preconceito, falta de ética e desigualdade, gerando uma evasão que resultou numa queda de aproximadamente 18% de investimento publicitário, de acordo com a consultoria Pathmatics[2].
Banco de dados
A partir dessa reflexão, surgem alguns questionamentos, como, qual o papel dessas plataformas e veículos de comunicação sobre a propagação de discurso de ódio? O Facebook (e consequentemente a rede social Instagram) não é um produtor de conteúdo, mas uma plataforma de comunicação que tem responsabilidade de garantir regras a partir do zelo de seus algoritmos para “ditar as regras do jogo”, ou seja, necessita aprimorar o software já que seu ambiente virou uma máquina de manipulação e influencia. E quem garante essa informação é Brittany Kaiser, ex-diretora de desenvolvimento de negócios da Cambridge Analytica, no livro “Manipulados: Como a Cambridge Analytica e o Facebook Invadiram a Privacidade de Milhões e Botaram a Democracia em Xeque” 2020[1]). Na obra, Kaiser relata um dos maiores escândalos envolvendo as redes sociais, onde diz que a empresa usava “[…] os dados de milhões de pessoas para alimentar os medos desses usuários de redes sociais e levá-los a votar em determinados candidatos, como Donald Trump, ou a favor de temas específicos, como a saída do Reino Unido da União Europeia”.
Esse aspecto nos direciona ao conteúdo sobre segurança da comunicação e o uso de dados que foi fortemente debatido durante o Seminário Intensivo Digital transformation and the humanities: contemporary technocultural dimensions for research in the social and human sciences, com o Professor Peter Krapp (UC Irvine) no PPGCC UNISINOS, em março de 2020. Para Krapp, o caminho “seguro” proposto pelo discurso do próprio mercado da comunicação para evitar as falhas e supostos usos indevidos de dados de seus usuários, vê no uso da criptografia uma possibilidade de proporcionar a sensação de produzir menos ruído, ou falhas para os usuários. Curiosamente, uma das plataformas mais populares de troca de mensagens instantâneas entre usuários via internet, o WhatsApp, que garante que seu conteúdo é criptografado, pertence ao Sr. Mark Zuckerberg, leia-se, Facebook.
A relação entre os meios com os usuários, desenvolvedores, programadores ou espectadores estão interligadas em um processo de constante regeneração. “Os meios dependem de nós para sua inter-relação e evolução. O poder da tecnologia em criar seu próprio mercado de procura não pode ser desvinculado do fato de a tecnologia ser, antes de mais nada, uma extensão de nossos corpos e de nossos sentidos.” (McLuhan, 1964, pg.88). Reforçamos que uma das propostas do TCAv, nas palavras da pesquisadora Suzana Kilpp (2015, p. 19), é que “propomos pensar o audiovisual como estado da tecnocultura, (estágio da técnica, estágio das relações entre produção e consumo, etc.) […]” Para complementar a proposta de Kilpp, o pesquisador Gustavo Fischer em sua tese de doutorado, propõe justamente três facetas para caracterizar a internet, sendo uma delas a compreensão de que “possibilita enxergar a internet como um banco de dados, ou conjunto de informações, que podem ser arquivados, indexados e resgatados por determinados procedimentos técnicos” (FISCHER, 2008, p. 34).
Portanto, ao tensionar a tecnocultura, banco de dados, segurança da/na comunicação, internet e seus usuários, podemos ver um paradoxo nos que diz respeito enquanto as vidas dos usuários são “transparentes” [1] às plataformas e estados, estas mesmas agem com opacidade possibilitando essa modulação dos sentidos que circulam. Os estudos em tecnocultura podem ter uma dimensão ética que nos possibilitam problematizar e pensar possíveis caminhos para uma comunicação mais horizontal e transparente.
[1] Aqui poderíamos abrir outra discussão sobre o acesso das redes sociais e sistemas operacionais aos dados dos usuários e sua multiplicação para terceiros a partir das políticas de privacidade dessas plataformas e softwares.
Texto: Roberta Krause
Revisão: Leonardo de Mello
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1964.
FISCHER, Gustavo Daudt. As trajetórias e características do YouTube e Globo Media Center/Globo Vídeos: um olhar comunicacional sobre as lógicas operativas de websites de vídeos para compreender a constituição do caráter midiático da web. 2008. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós Graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2008
[1] KAISER, Brittany. Manipulados: Como a Cambridge Analytica e o Facebook Invadiram a Privacidade de Milhões e Botaram a Democracia em Xeque. São Paulo: HarperCollins, 2020.
KILPP, Suzana. (Org). Tecnocultura audiovisual: temas, metodologias e questões de pesquisa. Porto Alegre: Sulina, 2015.
[1] Stop Hate for Profit is a diverse and growing coalition that wants Facebook to take common-sense steps to address the rampant racism, disinformation and hate on its platform.
[2] https://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2020/07/03/veja-a-lista-das-marcas-participantes-do-boicote-ao-facebook.html
[1] https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/06/11/com-maior-uso-da-internet-durante-pandemia-numero-de-reclamacoes-aumenta-especialistas-apontam-problemas-mais-comuns.ghtml
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